Ultradireita procura no passado remoto justificativa para suas políticas atuais
GUILLERMO ALTARES LUCENDO
A idade Média se transformou em um assunto de intenso debate político. Não todo o período histórico, claro, ninguém discute sobre Excalibur e os Cavaleiros da Távola Redonda. O que está sobre a mesa é o momento das invasões muçulmanas, uma época de intensas mudanças políticas em uma Europa cujas fronteiras estavam sendo forjadas.
Nos últimos tempos, a ultradireita nacionalista transformou em uma espécie de totem esses séculos obscuros —são chamados assim pela notável ausência de documentos da queda do Império Romano até mais ou menos o ano 1.000, quando a economia e a administração começaram a se recuperar—. A visão atual sobre esse período tem muito a ver com o presente e muito pouco com um passado que é quase totalmente desconhecido. E é surpreendente ver a segurança com que descrevem aquela época os apologistas desse momento supostamente mítico de defesa da cristandade contra a invasão islâmica. Diversos movimentos de ultradireita agora se aferram a esses relatos para dizer que o fenômeno invasor está se repetindo na atualidade. Não ocorreu no passado e não ocorre agora. E, evidentemente, o que aconteceu não foi como dizem: foram séculos nos quais, basicamente, todo mundo invadia todo mundo.
Esse é um debate que aparece em alguns casos como farsa, por exemplo, quando recentemente foi retirada uma estátua de Abderramão III na cidade espanhola de Cadrete (nome árabe), como primeira medida de uma prefeitura comandada pelo Vox. Mas em outras ocasiões emerge como tragédia: o assassino que em março matou 50 pessoas em duas mesquitas da Nova Zelândia era obcecado com heróis míticos medievais da luta contra o Islã —do espanhol don Pelayo ao sérvio Milos Obilic—, e escreveu seus nomes nos carregadores com os quais realizou a matança.
“Não somente na Espanha, como em toda a Europa, a história da Idade Média se transformou em um foco de debate cada vez mais intenso”, diz Maribel Fierro, professora pesquisadora do CSIC e especialista em Al-Andalus. “A ideia da recuperação de uma suposta identidade imutável dos povos voltou a ressurgir. Os períodos que reivindicam são momentos em que ocorreram batalhas contra os muçulmanos. Sua ideia, totalmente infundada, é que o Islã é o inimigo da Europa”.
As batalhas que aparecem repetidamente nesse imaginário são Poitiers em 732, Covadonga em 722 (ou 718, 737 ou 754, de acordo com as diferentes versões), Kosovo em 1389 e, muito mais tarde, Viena em 1683. As duas primeiras foram confrontos com as tropas árabes e berberes procedentes do norte da África e da península Arábica; as segundas, contra os turcos. O problema com Poitiers, Covadonga e Kosovo é que são acontecimentos em que a história se mescla ao mito e sobre os quais os especialistas têm poucos dados, dispersos, tardios e duvidosos. Não se conservou o relato de uma testemunha contemporânea de nenhuma dessas batalhas. Todos esses mitos também foram reinterpretados nos séculos XIX e XX quando ocorreu a explosão dos Estados nacionais na Europa e se transformaram em relatos fundacionais.
As primeiras versões da batalha de Covadonga, com a qual começou a chamada Reconquista, vêm da Crônica de Alfonso III, por volta do ano 900, ainda que esse relato só tenha se popularizado no século XIII. É possível dizer a mesma coisa da batalha de Kosovo, o grande mito nacional sérvio, explorado até a última gota pelo nacionalismo balcânico. Na verdade, como afirma o historiador Noel Malcolm em Kosovo: A Short History (Kosovo: Curta História), ignora-se quase tudo sobre esse combate, não se sabe com certeza nem mesmo quem ganhou: a tradição diz que os sérvios perderam seu Estado aos turcos e construíram seu nacionalismo sobre a nostalgia e a derrota. O cavaleiro Milos Obilic, entretanto, que segundo a lenda matou o sultão Murad, é venerado quase religiosamente e fazia parte do avariado universo mental do assassino de Christchurch na Nova Zelândia.
Sobre a batalha de Poitiers, em que Carlos Martel supostamente derrotou os muçulmanos impedindo seu avanço ao norte, o medievalista da Universidade St. Andrews James T. Palmer escreveu um ensaio muito interessante. O artigo foi publicado no The Washington Post com o título de A história falsa que impulsionou o acusado da matança de Christchurch. No texto o professor mostra como a interpretação do confronto foi mudando: para Edward Gibbon, no século XVIII, simbolizava a perda da herança da Grécia e Roma; para Jules Michelet, no XIX, não era muito importante porque o problema estava nas invasões germânicas do norte; segundo Steve Bannon, um dos ideólogos do pensamento ultradireitista atual, ex-assessor da Casa Branca, essa batalha representa um convite a defender o Ocidente contra o Islã. “Não existem novas fontes históricas e sim uma nova agenda”, escreve Palmer. “Ao invocar o legado de Carlos Martel, o assassino de Christchurch abusa da história para justificar a violência. Ele se baseou na maneira em que esse acontecimento aparece descrito em muitos livros e sites, de modo que não se trata somente de um problema de ignorância. O que precisamos entender e combater é como momentos históricos como Poitiers receberam um significado através da política”.
Por trás dessa visão nacionalista do medievo se escondem vários pressupostos contraditórios com a pesquisa científica contemporânea. Primeiro, que os habitantes da Europa no século XXI são os herdeiros dos que habitavam esse mesmo lugar há séculos. Essa afirmação ignora que as unidades políticas são completamente diferentes, para não falar das migrações e misturas que marcam a história. Segundo, que podem ser estabelecidos paralelismos entre sociedades de séculos atrás e as atuais, sem levar em consideração as abismais diferenças que as separam em inúmeros assuntos, da escravidão à tecnologia. E, por último, que, mesmo admitindo essa herança, ela não precisa condicionar o presente.
“Essa mobilização reivindicando o passado é sempre ligada a tensões do presente, à necessidade de certas comunidades, ideologias e projetos políticos de encontrar suas justificativas”, diz Eduardo Manzano Moreno, pesquisar do CSIC, especialista em Al-Andalus, que recém-publicou La Corte del Califa (A Corte do Califa). “A simples regra de maior ou menor proximidade em relação a esse passado nem sempre funciona: os romanos e os mongóis puderam cometer todo o tipo de massacres e ninguém se importa, mas no caso dos muçulmanos, o discurso conservador tenta colocar a ideia de uma similitude exata entre o que ocorreu na Idade Média e o presente, algo que os próprios radicais islâmicos também alimentam”.
O historiador Jean-Paul Demoule estudou o assunto em seu livro Les dix millénaires oubliés qui ont fait l’histoire (Os Dez Milênios Esquecidos que Fizeram a História), e explica como os nacionalismos que explodem após a Primeira Guerra Mundial exploram a ideia de um povo que se manteve imutável ao longo dos séculos submergindo-se até mesmo na pré-história. “Foi preciso garantir a cada um desses Estados um passado glorioso, que se remonta aos confins dos tempos e que garante a existência da nação através da eternidade”, escreve o professor de Sorbonne. Seu ensaio acaba com uma pergunta: “A história não é muito mais interessante quando os seres humanos a escolhem do que quando a padecem?”.