A reação à lei de abuso de autoridade é um retrato do corporativismo típico do MP e do Judiciário

A LEI DE ABUSO de autoridade em vigor no Brasil foi promulgada em 1965, um ano após o golpe militar.

Geraldo Bubniak/Folhapress

Por João Filho

A LEI DE ABUSO de autoridade em vigor no Brasil foi promulgada em 1965, um ano após o golpe militar. Mas o projeto de lei foi escrito 11 anos antes, durante o governo do presidente eleito Juscelino Kubitschek. O mundo respirava os ares da fundação da ONU e da Declaração Universal dos Direitos Humanos, criados na década anterior. O autor da lei foi o deputado udenista Bilac Pinto, que na década seguinte apoiaria o golpe e se tornaria juiz do Supremo Tribunal Federal durante o regime militar. Apesar das credenciais reacionárias do autor, a lei era boa e visava conter a violência policial, principalmente no interior do país. Com a chegada dos militares, virou apenas um quadro na parede.

Sessenta e cinco anos depois, a lei continua a mesma, apesar do nível de participação da autoridade na vida dos cidadãos ser muito maior. O abuso de autoridade no Brasil raramente é punido, contribuindo para perpetuar uma cultura autoritária que se originou na escravidão, se consolidou nos anos de chumbo e hoje ganha novas asas com o bolsonarismo. O abuso de poder é uma instituição brasileira.

O descumprimento das leis pelas autoridades é algo banal, principalmente nas periferias do país. Se você ligar a TV em qualquer programa policial hoje, a chance de não presenciar um ato de abuso de autoridade é mínima. Já nos acostumamos a ver suspeitos sendo tratados como culpados, pessoas sendo algemadas sem motivo, invasões de casas sem mandado etc. Os mais pobres sempre conheceram a face mais cruel do abuso de autoridade.

No Rio de Janeiro, moradores de favela são assassinados quase que diariamente e são tratados como efeito colateral do combate ao crime. As punições das autoridades que abusam do poder praticamente inexistem. Diante de um flagrante abuso policial, nós já sabemos como os órgãos oficiais vão se posicionar: “os possíveis abusos serão investigados pela corregedoria”. É a frase protocolar que precede todo o engavetamento. O corporativismo inibe qualquer tipo de investigação.

Me parece claro que precisamos de um mecanismo que garanta que autoridades serão punidas se não cumprirem a lei, como todo cidadão, por mais bizarro que isso possa parecer. Não existe hoje um sistema de proteção dos direitos fundamentais contra o abuso de autoridade. A nova lei pode ser um novo marco civilizatório para o país.

Nessa semana, a Câmara aprovou uma atualização da lei que já havia sido aprovada no Senado. O texto tem sido alvo de críticas — algumas justas, outras não —, mas, no geral, representa um avanço importante em relação à lei vigente. O debate é válido, mas é preciso que ele se ancore no consenso de que as condutas das autoridades públicas não são devidamente fiscalizadas pelos meios atuais. Não é mais possível continuar aceitando essa realidade.

A nova lei especifica quais condutas serão consideradas abuso de autoridade e prevê as punições. Muitas dessas condutas já eram ilegais, mas o antigo texto dava margem à impunidade. Decretar condução coercitiva sem que o investigado tenha sido intimado a comparecer em juízo, por exemplo, será punido com detenção de um a quatro anos de prisão. Invadir uma casa sem mandado judicial, também receberá a mesma pena.

Desde 2016, quando o projeto tramitava no Senado, o então juiz Sergio Moro e os procuradores da Lava Jato iniciaram uma grande campanha política para que a lei fosse vetada. Os lavajatistas se empenharam em vender para a população a ideia de que estava em curso uma manobra comandada pelos poderosos para dificultar o combate à corrupção. A principal preocupação, segundo eles, seria a punição pelo “crime de hermenêutica”, que tornaria crime as divergências na interpretação da lei.

Na época, Moro foi a uma audiência no Senado e apresentou sugestão para limitar a possibilidade do crime de hermenêutica. Pois bem. O texto foi alterado ainda em 2017, e essa possibilidade, extinta. Não haveria mais motivos para os heróis do combate à corrupção chiarem, mas não foi o que aconteceu.

No ano seguinte, Dallagnol e outros procuradores da Lava Jato, como bons políticos que são, divulgaram nas redes sociais um vídeo insuflando a população contra o Senado: “Não permita que isso aconteça. Se manifeste contra essa lei. Viralize esse vídeo. Expresse a sua indignação. Faça a sua voz ser ouvida pelos políticos. Vamos lutar juntos contra a impunidade e contra a corrupção”.

Agora, após as publicações da Vaza Jato trazerem os meandros da força-tarefa à superfície, a indignação dos procuradores com nova lei é autoexplicativa. É claro que os integrantes de uma operação baseada essencialmente em desvios de conduta e abusos de autoridade ficariam contrariados com a nova lei. E, atenção, não estamos falando de um desvio aqui e outro ali, mas da essência da força-tarefa. Foi o abuso da autoridade como método que fez ela se tornar o grupo poderoso que é hoje, com forte apelo popular.

A nova lei ameaça essa imunidade informal que a força-tarefa desfruta.

Uma infinidade de ações comuns na Lava Jato seriam punidas pela nova lei: os grampos sem autorização judicial, as conduções coercitivas sem intimação prévia, a divulgação de gravação de conversa particular de acusado, e por aí vai. Tudo isso sempre foi ilegal, mas a fragilidade da lei dificultava a aplicação da punição, que depende de corregedorias e conselhos corporativistas. A certeza da impunidade é o motor dos arbítrios e ilegalidades da Lava Jato. A nova lei ameaça essa imunidade informal que a força-tarefa desfruta.

Mesmo com a possibilidade de crime de hermenêutica estar totalmente afastada, ainda hoje os procuradores seguem em campanha contra a lei. Eles não estão fazendo críticas pontuais ao projeto, mas exigindo seu veto na íntegra. Os lavajatistas continuam insistindo na falsa narrativa de que a lei é uma tentativa de dificultar o combate à corrupção. Mas não há em nenhuma parte do texto qualquer item que represente prejuízo ao combate à corrupção.

A grande novidade na lei é a definição das punições que sofrerão as autoridades públicas que atuarem à margem da Constituição. Resumindo: basta combater a corrupção respeitando as leis. Essa é uma obrigação que sempre existiu, mas não havia punição para quem a descumprisse. É o que a nova lei tenta corrigir. Esse chilique dos integrantes da Lava Jato, ecoado por parlamentares e militantes bolsonaristas, nada mais é do que uma bela assinada de recibo por parte de quem sempre acreditou estar acima da lei.

Assim como outros críticos, o procurador Roberson Pozzobon tem dito que o projeto foi aprovado “com pressa” e sem passar por um debate. É mentira. O debate vem sendo feito há pelo menos dez anos, quando a proposta começou a tramitar no Congresso, muito antes da Lava Jato existir. E não são apenas os integrantes do Ministério Público e do judiciário que passarão a ser passíveis de sanção pela nova lei. Servidores públicos, militares, membros do Executivo, do Legislativo, dos tribunais e conselhos de contas também serão. Insinuar que se trata de uma ação contra a Lava Jato é só mais uma maneira de confundir a opinião pública.

Os instrumentos legais existentes são suficientes para o combate à corrupção. Se há quem ache que não são, que se mobilize politicamente — coisa que o lavajatismo faz muito bem — para que se criem novos mecanismos legais, sempre em consonância com Constituição. É uma obviedade constrangedora, mas vivemos tempos em que as obviedades devem ser repetidas.

O abuso de autoridade é um crime de ação penal pública, ou seja, a denúncia só poderá ser feita por integrantes do Ministério Público e julgada pela justiça. Os lavajatistas não têm porque temer o trabalho dos seus colegas. Ou será que eles temem o abuso de autoridade dos seus pares?

Os métodos abusivos da força-tarefa se replicaram em outras operações da Polícia Federal. Virou regra. Um caso emblemático foi o do reitor da Universidade Federal de Santa Catarina Luiz Carlos Cancellier que, com a anuência do Ministério Público e da Justiça Federal, foi preso sem nunca ter sido ouvido pela delegada Erika Marena, ex-integrante da Lava Jato. O professor foi algemado, acorrentado pelos pés e levado a um presídio de segurança máxima, onde ficou detido por 30 horas. Através de um habeas corpus, o reitor foi solto, mas continuou impedido de entrar na universidade. Dezoito dias depois, Cancellier se suicidou.

Essa sanha autoritária precisa ser contida e responsabilizada. O abuso de autoridade mata.

O sofrimento e a humilhação pela qual ele passou, milhares de brasileiros que moram nas periferias passam diariamente. Só essa semana, seis jovens foram assassinados em operações policiais do Rio de Janeiro. Não eram suspeitos, não portavam armas. Foram mortos em nome do combate ao crime. A Secretaria de Segurança emitiu nota dizendo que policiais foram recebidos a tiros e reagiram. Conhecemos muito bem como termina esse filme. Dizer que o assunto morrerá no fundo da gaveta de uma corregedoria não pode ser considerado um spoiler.

A falta de uma cultura democrática faz muitos brasileiros normalizarem a recente escalada autoritária do Estado em diversos níveis. A nova lei pode ser um avanço nesse sentido. Não é mais possível tolerar que uma autoridade pública, seja ela um policial federal, um juiz ou um guarda da esquina, abuse do poder e continue impune. Essa sanha autoritária precisa ser contida e responsabilizada. O abuso de autoridade mata.

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