As creches que nunca saíram do papel, desamparando milhares de famílias brasileiras

Faz mais ou menos cinco anos que as mães do Jardim Ouro Fino, nos extremos de Paranaguá (cidade de 153 mil habitantes no litoral do Paraná)

GETTY IMAGES Image caption Relatório de 2018 da Controladoria-Geral da União calculou um prejuízo de cerca de R$ 800 milhões aos cofres públicos por obras não concluídas de creches do Proinfância

Paula Adamo Idoeta

Faz mais ou menos cinco anos que as mães do Jardim Ouro Fino, nos extremos de Paranaguá (cidade de 153 mil habitantes no litoral do Paraná), ouviram das autoridades locais da época que o bairro periférico ganharia sua primeira creche, um posto de saúde e uma escola municipal. O terreno já havia até sido escolhido.

“A expectativa foi muito grande. As mães que tinham filhos de um ano acharam que quando eles tivessem dois anos já estariam na creche”, conta à BBC News Brasil Ana Marta Moraes de Paula Villamayor, presidente da associação do bairro.

Essas crianças cresceram e nunca conseguiram frequentar aquela creche porque a obra nunca saiu do papel. O terreno, relembra Villamayor, acabou sendo reivindicado por um proprietário particular, a disputa foi parar na Justiça “e hoje tem um sobrado no lugar onde a gente achava que seriam a nossa creche, escola e posto de saúde”.

A obra não realizada é 1 entre 7 creches planejadas e nunca executadas em Paranaguá dentro do Proinfância, Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil, lançado há 12 anos pelo governo federal (ainda sob Luiz Inácio Lula da Silva) e em curso até hoje, com o objetivo de dar assistência e dinheiro a municípios que queiram construir e equipar creches, para garantir o acesso de crianças à educação infantil.

E o caso da cidade litorânea paranaense está longe de ser exceção.

Um relatório de 2018 da Controladoria-Geral da União calculou um prejuízo de cerca de R$ 800 milhões aos cofres públicos por obras não concluídas do Proinfância, ante problemas que se arrastam por governos distintos – em âmbito federal e municipal – e que evidenciam, segundo especialistas, não apenas corrupção, mas também falhas de planejamento, entraves políticos e ineficiência com o dinheiro do contribuinte.

O mesmo relatório da CGU apontava que, até maio de 2018, de 8.824 obras previstas pelo Proinfância, menos da metade (3.482) haviam sido concluídas e só 1.478 estavam em funcionamento.

“Mesmo quando as obras estão 100% concluídas, não há certeza de que todas estejam de fato funcionando como escola”, explica à BBC News Brasil Maria Cristina Manella Cordeiro, procuradora do Ministério Público do Rio de Janeiro e coordenadora de um grupo de trabalho para fiscalizar obras do Proinfância.

“Certa vez, visitei uma creche em Alagoas que estava pronta, equipada até com bercinhos. E estava fechada havia dois anos, porque tinha sido construída pelo prefeito anterior e o prefeito seguinte não queria inaugurá-la, para não dar crédito para o antecessor.”

A obra só foi inaugurada depois da pressão do Ministério Público, conta Cordeiro.

Problemas sistêmicos’

Disputas políticas do tipo são apenas um entre os muitos entraves encontrados na construção de creches públicas pelo Brasil.

A ONG Transparência Brasil monitorou, ao longo de dois anos, projetos de 135 centros de educação infantil em 21 municípios do Sul e Sudeste do país. E identificou que a maioria deles apresentava “problemas sistêmicos, do planejamento à entrega”.

Isso inclui, por exemplo, problemas nos editais e na condução das licitações das obras, problemas com os terrenos (alguns inexistentes, em disputa judicial ou inadequados) e má fiscalização das obras por parte das prefeituras – algumas das quais recebem das empreiteiras as creches supostamente “concluídas”, mas cheias de problemas de infraestrutura e acabamento, segundo a ONG.

“O panorama das obras monitoradas revela a baixa eficácia do programa nas localidades analisadas, com menos de uma em cada cinco obras previstas tendo sido entregue no período observado”, diz o estudo da Transparência Brasil, publicado em junho deste ano.

“Outra face dos resultados decepcionantes é a grande parcela de obras canceladas: 40% das obras acompanhadas não vão ser concretizadas”, prossegue o texto. “De maneira geral, as obras do Proinfância são, na melhor das hipóteses, entregues com alguns meses de atraso, e na pior, iniciadas e abandonadas por anos a fio, sem perspectiva de retomada e gerando desperdício de recursos públicos.”

Segundo Manoel Galdino, diretor-executivo da Transparência Brasil, um dos diversos percalços enfrentados pelo programa foi a adoção, entre 2012 e 2015, de um modelo chamado “metodologia inovadora”, que tinha objetivo agilizar e baratear a execução das obras.

A ideia era dividir os municípios do país em quatro seções, cada uma delas sob a responsabilidade de uma empreiteira, que executaria o mesmo tipo de obra em todas as cidades dentro da sua região. Com isso, a promessa era de ganhar com a escala dos projetos.

Não foi o que aconteceu, segundo órgãos de controle e a Transparência Brasil, que identificou um “massivo abandono das obras pelas empresas selecionadas para executar os projetos”, levando a um “fracasso” desse modelo.

“Como cada empresa tinha tecnologia própria, nenhuma outra empresa conseguia reassumir as obras abandonadas”, diz Galdino à BBC News Brasil. “Virou um abacaxi. Obras abandonadas têm mato, invasão, depredação. Retomar as obras ficava muito caro, e às vezes tinha-se que começar tudo de novo, do zero.”

Custos financeiros e sociais

É um retrato, diz Galdino, da mesma ineficiência vista com o dinheiro público em tantos outros projetos de infraestrutura e abastecimento pelo país. “Vemos isso também em (licitações de) merenda, unidades básicas de saúde, educação. (…) Não tenho números para comprovar, mas minha percepção é de que a ineficiência custa mais até do que a corrupção. Além disso, na ineficiência é mais fácil haver corrupção, já que falta fiscalização.”

Um exemplo vem do Mato Grosso do Sul, onde uma auditoria do Tribunal de Contas da União verificou, em 2017, “a contratação de empresas sem demonstração de capacidade técnico-operacional” para a construção de creches e outras pequenas obras públicas em cidades sul-matogrossenses, que acabaram atrasadas ou paralisadas.

O prejuízo financeiro aos contribuintes no caso foi de R$ 3,6 milhões, mas o Tribunal de Contas cita também o “prejuízo social de extremo impacto”: em três dos municípios que ficaram sem creche, a estimativa é de que 672 crianças permaneciam “sem ter acesso a ações de educação pública infantil” por causa das obras inacabadas.

No âmbito nacional, a Controladoria-Geral da União estimou, em março de 2018, que “o Proinfância tinha o potencial de criar 1,8 milhão de novas vagas (em creches), mas esse número não deve ter ultrapassado as 500 mil”.

Especificamente nas obras paralisadas pelo país, a CGU apontou que os atrasos prejudicavam, no ano passado, mais de 99 mil crianças.

O deficit de vagas em creches é uma das principais demandas na educação brasileira, uma vez que apenas 35,6% das crianças menores de 3 anos e 11 meses do país são atendidas em estabelecimentos de educação infantil, segundo dados de 2018 do IBGE compilados pela ONG Todos Pela Educação.

Para especialistas em primeira infância, um atendimento especializado e de qualidade nessa faixa etária é importante não apenas para permitir que seus pais possam trabalhar durante o dia, mas também para aproveitar o amplo potencial de crianças pequenas em desenvolver habilidades cognitivas e sociais, com profundos impactos em sua vida acadêmica, profissional e pessoal no futuro.

De 21 obras, 1 só foi concluída

Diferentes órgãos de monitoramento encontraram problemas no Proinfância pelo país. Em Uberlândia (MG), a Transparência Brasil e o Observatório Social de obras da cidade selecionaram 21 projetos de creches para monitoramento ao longo de dois anos. Dessas, uma única obra foi concluída até junho de 2019 – outras 19 foram canceladas, e uma aguardava início da construção.

“Vemos que os prefeitos assinam os convênios e depois não têm interesse em executar as obras, porque é difícil manter as creches”, opina Vladimir Rodrigues, do Observatório Social de Uberlândia.

A mesma lógica, diz ele, vale para projetos de creches criados por emenda parlamentar. “O deputado cria a emenda e faz aquela média (com os eleitores), aparece na TV e depois esquece o que tem que fazer (para a obra de fato existir). Até construir e entregar a creche tem um longo caminho.”

Uma questão importante, diz a procuradora Maria Cristina Cordeiro, é que, ao assinar os convênios para a construção de creches, os municípios muitas vezes já recebem uma parcela do dinheiro do governo federal – mesmo que a creche nunca saia do papel. “A maioria das vezes esse dinheiro não é devolvido pelos municípios. Agora, queremos trabalhar para pedir a devolução, e que esse dinheiro não vá para o caixa único da União, mas sim para financiar outras obras de creches paradas. Ou seja, que o dinheiro seja usado para o fim a que estava (originalmente) destinado.”

O financiamento para a construção de creches vem do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE), uma autarquia do governo federal.

Por email, a assessoria do órgão explica que cabe aos governos municipais contratar e gerir as obras de creches e que o FNDE ajuda com orientações técnicas, capacitação e assistência.

“Considerando que a execução e conclusão dos empreendimentos é de responsabilidade dos entes beneficiados, informamos que não há como definir a quantidade de obras que serão entregues. Cumpre registrar que os entes devem finalizar as obras dentro do prazo de vigência dos Termos de Compromissos firmados com o FNDE”, diz nota do órgão.

“Destacamos que o FNDE trabalha para materializar sua missão de prestar assistência técnica e financeira, com vistas a executar ações que contribuam para uma educação de qualidade a todos.”

O que fazer?

Para Manoel Galdino, da Transparência Brasil, existe uma grande dificuldade em conciliar interesses políticos, elaboração correta de projetos e uso eficiente do dinheiro público.

“A questão não é saber como desenhar melhor (o programa), mas sim ter critério técnico ao aprovar os projetos, apoio técnico para gerenciar e fiscalizar – e esse apoio hoje não é eficiente – e superar os entraves políticos”, opina.

Em Paranaguá, no litoral paranaense, pelo menos um bairro carente se beneficiou de uma nova creche recente. No Jardim Iguaçu, a obra, que havia começado em 2012 e também sofrido com atrasos, paralisações e depredações, foi concluída e aberta à população no final do ano passado, explica Muriel Syriani Veluza, vice-presidente do Observatório Social da cidade.

As outras sete que foram canceladas já deixaram uma população carente por vagas, diz ela. “Fomos de bairro em bairro (onde as creches estavam planejadas), e a demanda existe.”

No Jardim Ouro Fino, cuja história abre esta reportagem, a solução por enquanto é entrar na lista de espera de creches em bairros próximos, mas a fila às vezes leva mais de um ano. E, para levar os filhos diariamente às creches vizinhas, pais e mães precisam atravessar de bicicleta ou ônibus a rodovia PR-407, trajeto nem sempre seguro.

A presidente da associação do bairro, Ana Marta Villamayor, afirma que ainda há tratativas com as autoridades para tentar obter uma creche, mesmo que em um novo terreno e com um novo projeto. “Aquelas crianças (que cinco anos atrás esperavam vagas) já cresceram, mas tem outras nascendo que futuramente vão precisar de vagas.”

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