Abstêmia há mais de dez anos, jornalista dá palestras sobre alcoolismo, lança livro sobre o tema e tenta mostrar que “dá para ser feliz sem beber”
São Paulo
No mês passado completaram-se 12 anos desde que a jornalista e escritora Barbara Gancia tomou a saideira. Foi a caminho de uma clínica para dependentes, nos arredores de São Paulo. Levada por uma amiga, quando já estava no limite do alcoolismo, ela foi parando de bar em bar, de padaria em padaria, de boteco em boteco, para beber a derradeira, até chegar, “torta”, à clínica. Não foi a primeira internação e nem o primeiro tratamento que ela se propôs a fazer para se livrar do vício pelo álcool, parceiro de mais de 30 anos de histórias e muita “ressaca moral”, como ela mesma diz. Mas foi a última. Apesar disso, sabe que seu problema é vitalício. “Curada eu sei que não estou”.
Barbara Gancia, 61, nasceu e cresceu na alta sociedade paulistana. Filha do casal de pilotos Piero e Lulla Gancia, a caçula de três irmãos transitou, desde pequena, por festas e eventos com celebridades e personalidades do mundo todo. Estudou em um dos colégios mais caros do país antes de ir para o exterior terminar os estudos. No meio de tanta badalação, ela narra inúmeros casos em que deu vexame por passar da conta com o álcool, ingerido pela primeira vez aos três anos de idade, quando virou restos dos copos dos convidados em uma festa. Depois, repetiu a dose aos seis, quando descobriu o licor que recheava os chocolates da mãe. E novamente aos nove, quando bebeu ponche escondida. “Com esse padrão, aos 20 anos eu estava bebendo regularmente. E bebendo como gente grande”, diz ela.
Algumas das histórias, inclusive essas das primeiras experiências com o álcool, estão no livro A saideira – Uma dose de esperança depois de anos lutando contra a dependência (Editora Planeta). Algumas, porque nem todas ela se lembra. “Eu tive que entrevistar alguns amigos para que eles me contassem algumas coisas, porque eu não me lembrava das histórias”, conta ela, na sala de seu apartamento no bairro do Itaim, onde recebeu a reportagem. Outras anedotas ficaram de fora do livro por pura “vergonha” de contá-las. “Se fosse para contar tudo, teria que fazer uns oito volumes”, diz ela, rindo. “Peguei as mais pitorescas também porque queria que o livro fosse mais leve e palatável”.
Os casos contados pela jornalista são “palatáveis” porque ela imprime muito de sua personalidade nos textos. Barbara é divertida, engraçada, fala sem parar, gosta de fazer seu interlocutor rir, como, por exemplo, quando conta sobre o dia em que fez um ebó para tentar se livrar do vício. Mas não fosse por uma questão do estilo cômico, as histórias de A saideira seriam trágicas. Ela sofreu ao menos oito acidentes de carro por estar embriagada no volante – mas não se lembra de todos. Em um deles, perdeu a visão de um dos olhos. Bebeu tanto certa vez, que acordou no chão da sala, em meio a uma poça de sangue, com um talho na cabeça, e até hoje não se lembra do que aconteceu. Poderia ter morrido em várias das situações em que se meteu. “O alcoólatra que não para de beber, ele acaba morrendo”, diz. “Ou vai cair no banheiro, ou brigar num bar, ou no trânsito…”
– Como você mesma quase morreu várias vezes, né?
– “Exatamente” (risos). “O problema do alcoolismo é que você só para quando tem um dano grande, quando tá no fundo do poço”.
Como em todos os casos de adicção, o mal que o álcool causava não se limitava somente a ela. “O alcoolismo é uma doença que prejudica os outros também. Todo mundo fica com raiva”, diz. “A minha família queria me matar. A minha irmã ficava super preocupada e magoada, mas também ficava com ódio”. Sua predileção pelo whisky fez com que perdesse amigos, relacionamentos e trabalhos. “Chegou um momento em que eu parei de ser convidada para os lugares. Porque intimida muito. Muitas das pessoas falavam ‘a Bárbara é um perigo”. A gota d’água foi quando ela apresentou um programa de televisão depois de ter bebido a tarde inteira. “Minha mãe assistiu, me ligou e falou: ‘você está bêbada, né?’ Aquilo foi muito humilhante. Foi a ressaca moral que me fez procurar ajuda”.
A doença do silêncio
No Brasil, as políticas públicas de combate ao alcoolismo, doença que mata mais de três milhões de pessoas por ano em todo o mundo, ainda são muito tímidas. O distanciamento da realidade é tão gritante que o Dia Nacional de Combate às Drogas e ao Alcoolismo é celebrado, por alguma razão, no dia 18 de fevereiro. Não é raro que a data coincida com o Carnaval, momento em que o consumo de álcool e drogas aumenta substancialmente. Apesar de existir uma data para lembrar do combate ao consumo exagerado dessas substâncias, pouco se faz, efetivamente, para prevenir o alcoolismo, em um país onde a indústria de bebidas é uma das mais poderosas. “A indústria de bebida consegue fazer um lobby gigantesco no Brasil”, diz Barbara. “Aqui, a cerveja é legislada de forma diferente das demais bebidas. Pode ter anúncio, patrocinar as festas de universidade, esportes…”. Ela defende que as companhias produtoras de bebida deveriam gastar metade da verba destinada a publicidade em programas de conscientização sobre o consumo de álcool.
Ela mesma já fez uma limonada de sua experiência com o alcoolismo, ao bater na porta de um dos diretores da Ambev para dizer que eles deveriam compartilhar a responsabilização pelos danos que suas bebidas causam. Assim, passou a fazer palestras por todo o país para alertar sobre o consumo de álcool e suas consequências. Grande parte do problema está, segundo ela, no silêncio diante dessa questão. “Eu já fui dar palestra em favela não pacificada. Os garotos de 12 anos sabem tudo sobre o AA, eles frequentam o Al-Anon [grupo para os familiares e amigos de alcoólatras]. Porque o pai é traficante”, diz. “E aí você vai em escola de granfino, e ninguém sabe porra nenhuma, os pais não querem que fale desse assunto”.
A ideia de escrever um livro, ela diz, surgiu justamente para colocar os riscos do abuso do álcool em discussão. Para isso, ela teve que superar a vergonha de reviver muito do que fez ao longo das décadas de vício. “Foi complicado escrever o livro. Eu sonhava com as coisas que já tinham acontecido…”. O processo todo durou pouco mais de dois anos, e hoje ela comemora o feedback positivo que chega dos leitores. “Tenho recebido retornos de gente que comprou o livro e no final decidiu parar de beber”, conta. “As pessoas falam: ‘você era uma bêbada igual a mim. Eu estou me vendo nas histórias!”.
Apesar de estar longe do álcool há mais de uma década, Barbara conta que não deixa de sair por isso. Mas tem suas estratégias, como chegar mais tarde e sempre ir embora mais cedo das festas. “Eu sou boêmia”, diz. “Vou aos bares tranquilamente, mas tomo Coca Cola, limonada, energético. E fico olhando as outras pessoas e penso ‘graças a deus que não sou eu fazendo isso’. Porque eu tenho péssimas lembranças, eu estou fazendo esse negócio do livro e estou sempre me lembrando”, conta.
As lembranças de um passado que a deixa envergonhada são um poderoso antídoto para deixá-la longe da bebida. “De quando em quando eu estou numa festa com um monte de gente maluca e de repente eu penso ‘que pena que eu não bebo”, admite. “Mas aí eu lembro da pessoa que eu virava quando bebia. Eu não era aquela pessoa boazinha. Eu fazia estrago”. Por isso, ela diz, sem nenhum orgulho, que “até hoje” está pedindo desculpas para as pessoas com quem convive pelo que fez no passado.
Hoje, ela substituiu o prazer que o álcool dava por programas mais leves. Vive com a mulher, Marcela Bastos, e os enteados, além de dois cachorros da raça Dachshund, que ficaram o tempo todo ao lado dela durante a entrevista. E jura que a esteira ergométrica que está na sala é utilizada todos os dias. “Como você pode ver, não tem nenhuma roupa pendurada aqui, eu uso para caminhar de verdade”, diz, rindo.
“O alcoólatra que não para de beber, ele acaba morrendo”
Embora diga que “nem pensa” em bebida, Barbara sabe que não está curada. De vez em quando ainda vai às reuniões dos Narcóticos Anônimos (NA), e é seguidora convicta dos 12 passos, método difundido por todo o mundo para o acompanhamento de dependentes químicos. “Vou no NA, mas eu falo AA [alcoólatras anônimos] porque quando você fala NA, já pensam que você é um junk. Mas como hoje em dia todo mundo tem dependência cruzada, quem sobrou hoje no AA são uns velhos chatos e caretas, do século retrasado”, diz. “Você tem que dar um pouco de risada e lá dentro do NA você dá muita risada porque só tem maluco. É divertidíssimo. Claro, tem horas que é barra pesada”.
O livro, ela conta, a ajudou a romper as barreiras dos grupos de ajuda e das clínicas, e trazer o tema para ser debatido em outros ambientes. “O objetivo do livro é mostrar que dá para você parar de beber e ser feliz, e também abrir essa discussão no Brasil porque ninguém faz isso. É uma loucura, em volta da gente tem milhares de pessoas que precisariam de ajuda”.
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