Guilherme Pavarin
FAZIA MESES QUE o cientista da computação Fabrício Benevenuto não via nada de novo na sua ronda diária por grupos políticos de WhatsApp. Criador de uma ferramenta capaz de elencar os conteúdos mais compartilhados no aplicativo, o WhatsApp Monitor, o professor associado da UFMG via com tédio os mesmos tipos de montagens, áudios, notícias falsas, correntes e vídeos motivacionais percorrerem sua tela, dia após dia nos 350 grupos políticos abertos que acompanha.
Na tarde de 8 de maio, porém, Benevenuto notou algo estranho: quase todas as imagens mais compartilhadas no seu sistema mostravam universitários nus, teses com nomes esdrúxulos e desenhos irônicos sobre estudantes de humanas. Aquilo, percebeu, não era espontâneo. Checou os altos números e concluiu que se tratava de algo novo, orquestrado. Estava diante de uma nova ofensiva da milícia digital de Bolsonaro, grupo que andava pouco ruidoso após as eleições.
“Soou como ataque, uma tentativa de desconstruir a imagem das universidades públicas com conteúdos antigos ou tirados de contexto, como se todas fossem uma bagunça”, diz Benevenuto. “Como trabalho em uma, fiquei preocupado.” Os variados tipos de compartilhamentos chamaram sua atenção. Notou que, depois de alguns meses de marasmo, muitos grupos ociosos associados a Bolsonaro espalhavam as mensagens com afinco comparável ao do ano passado, quando operavam em sua capacidade máxima e com fortes indícios de disparo em massa. Era o despertar de uma engrenagem que havia feito grande estrago meses atrás.
Das 30 imagens mais compartilhadas no WhatsApp em maio, 17 são referentes ao que bolsonaristas chamam de depravação nas universidades federais.
O levante das redes bolsonaristas não vinha por acaso. Duas pesquisas divulgadas em maio apontavam para um naufrágio do otimismo com o presidente, Jair Bolsonaro. A primeira, do instituto XP Ipespe, mostrou que, de abril para maio, o percentual de ruim e péssimo na avaliação do Bolsonaro subiu de 26% para 31%; já a segunda, uma análise de sentimentos de redes sociais feita pela startup Arquimedes, apontou que, nas últimas semanas, mais pessoas que se mostravam neutras ao novo presidente passaram a avaliá-lo negativamente. Para as duas empresas, os principais motivos foram o desgaste entre militares e Olavo de Carvalho e o corte na educação anunciado no dia 30 de abril pelo novo ministro da Educação, Abraham Weintraub.
As táticas de guerrilha soavam similares às das eleições de 2018. Pelo WhatsApp, centenas de grupos de apoiadores de Bolsonaro passaram a espalhar imagens que reforçavam a ideia, endossada pelo próprio Weintraub, de que as universidades públicas se tornaram lugar de “balbúrdia”. Montagens de gosto estético e moral duvidosos foram replicadas sem parar. Eram fotos e vídeos de performances artísticas, capas de monografias sobre sexualidade e paredes com pixações provocadoras. Em cada mídia, havia a legenda com o suposto nome da instituição federal e um texto que dizia: “Veja em que se transformaram nossas Universidades Federais! É UM ABSURDO”.
Surtiu algum barulho. Segundo a ferramenta de Benevenuto, nas duas primeiras semanas de maio, das 30 imagens mais compartilhadas no WhatsApp, 17 são referentes ao que bolsonaristas chamam de depravação nas salas de aula das universidades federais. (De resto, quatro associavam Marielle Franco ao tráfico de drogas a outros crimes, três eram denúncias de militantes petistas infiltrados em grupos, uma era uma defesa para fechar o STF e cinco eram imagens com tarja preta de conteúdo impróprio — provavelmente parte de uma mensagem em texto.)
Crédito: WhatsApp Monitor
Benevenuto ressalta que seu software dá apenas uma amostra do turbilhão de montagens fabricadas a todo vapor: os 350 grupos que monitora são uma parte ínfima dos mais de 127 milhões de usuários e dos incontáveis grupos fechados no país. “Damos acesso a jornalistas e agora a pesquisadores para terem uma noção do que é compartilhado lá dentro, mas sabemos que não é um número preciso”, me disse Benevenuto.
Imerso em dezenas de grupos pró-Bolsonaro nos últimos dias, conclui que o grosso das mensagens dos bolsonaristas vem de grupos fechados, em que, em grande parte, apenas administradores podem enviar conteúdos. Vários dos grupos também adotam uma estratégia de renovação, isto é, são encerrados e depois abertos com outro nome e endereço. “É uma tática comum: eles fecham um grupo, depois mandam o convite para as pessoas que estavam lá entrarem em outro, assim vão renovando”, me disse Sergio Denicoli, diretor da consultoria AP/Exata e pós-doutor em comunicação digital. Isso explica por que vários dos grupos importantes durante a época das eleições não funcionam mais. Eles só mudaram de cara para provavelmente fazer uma faxina em usuários inativos.
Estudioso das redes de Bolsonaro desde 2017, Denicoli também notou atividade incomum nos últimos dias. De primeira, diz, os militantes de direita iniciaram sua tática de testar narrativas. No caso, a de que universidades públicas são lugares repletos de nudez, performances e cursos inúteis. “Eles vão chegando, vão testando narrativa, ensinando como argumentar”, explica Denicoli. “A eleição foi uma guerra retórica. A rede do Bolsonaro foi muito inteligente, impôs os temas que queria, e as pessoas repetiam os argumentos, mas agora não estamos vendo o mesmo sucesso.”
‘Os movimentos começam nos grupos e se cristalizam no Twitter, mas isso pode levar dias ou semanas. O laboratório é o WhatsApp.’
Na análise de Denicoli, o corte na educação desagradou e mobilizou muita gente, o que fez com que os grupos de WhatsApp pró-Bolsonaro tentassem mais esforços para reverter a opinião de massa. O tiro, no entanto, saiu pela culatra. “Notamos em nossos dados que o movimento da educação é o mais importante da oposição, tem uma capilaridade e uma autenticidade muito fortes. São muitos pais, alunos e funcionários que fazem parte do sistema educacional, eles sabem que a realidade não é como os memes. Algo parecido ocorreu no Carnaval, quando Bolsonaro tentou generalizar o Carnaval com a polêmica do golden shower. Algumas narrativas não funcionam.”
Baseada em recursos de inteligência artificial e conceitos da psicologia, a análise de Denicoli capta oito tipos de emoções nos textos deixados em redes sociais como Instagram, YouTube e principalmente Twitter. Sua plataforma consegue, pela combinação de palavras dos usuários, saber se uma mensagem possui sensações como indignação, raiva, tristeza, desgosto, alegria ou confiança. Sua conclusão, depois confirmada pelas pesquisas de opinião, é que, ainda que Bolsonaro ainda conte com grande confiança em parte do seu eleitorado, os índices de medo e tristeza subiram bastante. “A rede de Bolsonaro era o único discurso vigente, era a mais barulhenta, mas agora as redes de esquerda cresceram”, diz Denicoli. “Começou a ter uma mobilização das pessoas pedindo mobilização, as pessoas demonstraram interesse e aí surgiu a ideia de greve dos movimentos sindicais. Foram manifestações espontâneas, principalmente de estudantes, que ganharam adesão.” A referência de Denicoli é à greve e aos protestos que estão marcados por todo o país para esta quarta-feira com milhares de menções nas redes sociais.
Os dados de Denicoli lidam com a parte acessível, mais clara, das redes bolsonaristas. Segundo ele, o Twitter é onde ocorre a segunda etapa da estratégia, a parte final e concreta das pautas do clã de Bolsonaro. Lá é onde se consolidam as narrativas iniciadas na parte escura, mais difícil de mensurar e de rastrear, no WhatsApp. “Os movimentos começam nos grupos e se cristalizam no Twitter, mas isso pode levar dias ou semanas. O laboratório é o WhatsApp.” Isso significa que, daqui pra frente, no Twitter, no Facebook e no YouTube, provavelmente haverá uma enxurrada ainda maior de montagens a fim de desmoralizar as instituições públicas de ensino.
Crédito: Viktor Chagas/ UFF
Nas esteiras da fábrica de fake news
O pesquisador Viktor Chagas, da Universidade Federal Fluminense, analisa desde o começo do ano passado como funcionam as redes bolsonaristas no WhatsApp. Com a ajuda de sua equipe, ele monitora mais de 150 grupos de apoio ao político do PSL. Chagas foi o primeiro a expor, no ano passado, a existência de variados tipos de grupo pró-Bolsonaro que integravam uma estratégia maior e calculada. De acordo com ele, havia ao menos três espécies: o de divulgação (que envia links, panfletos etc.); o de mobilização (que incentiva boicotes ou subidas de hashtags, bem como ações nas ruas); e os de debate (responsáveis pela elaboração das narrativas e trocas de conteúdos). Todos eles, afirma Chagas, seguiam uma hierarquia e eram divididos de acordo com localização. A lógica se mantém viva hoje, ainda que, ao menos até semanas atrás, houvesse uma escala bem menor de mensagens e produção.
“Houve uma latência na transição pro novo governo, em janeiro”, afirma Chagas. “Teve uma baixa de usuários e muitos grupos estavam aguardando sinal para retomar a força de antes. Em meados de janeiro, começaram a voltar os listões públicos e adesão em massa para desmobilizar a oposição.”
‘Há um claro indicativo de que se trata de trabalho profissionalizado, de disparos automatizados.’
Os listões a que Chagas se refere são nomes e endereços de canais pró-Bolsonaro no WhatsApp de acordo com tema e região. Podem ser chats como “Lavatogas ZAP” (que busca uma limpeza no judiciário) e o “Rede Bolsonarista TO” (de militantes de Tocantins). Eles podem ser acessados em sites e plataformas específicas, como o zapbolsonaro.com e a rede social de extrema-direita Gab, em que moderadores informam quais grupos possuem vagas. A ideia, diz o pesquisador, é manter os grupos funcionando no limite da plataforma, de 256 membros. Também notei que existem espécies de mensageiros individuais que passam a enviar mensagens em separado para todos os integrantes dos grupos. Ao entrar em um grupo pró-Bolsonaro em SP, por exemplo, vários usuários pediram autorização para enviar conteúdos de direita diretamente via celular.
Os disparos em massa, muito falados durante as eleições, também continuam. “É possível reparar em padrões de disparo profissional para os mesmos grupos quatro vezes ao dia, em horários diferentes, pela manhã, à tarde, à noite e de madrugada”, afirma Chagas. “Há uma circulação bastante intensa de imagens e apelo persuasivo das mesmas fontes, reiteradamente acionadas. São vídeos de influenciadores, como Luciano Hang, dono da Havan, e de anônimos em situações cotidianas.”
Definir com precisão quem está no comando das operações não é possível. Hoje, a maior parte dos moderadores usa números internacionais — durante a apuração, quase todos os prefixos com que cruzei eram de cidades dos EUA. Ainda assim, há algumas pistas deixadas na época da eleição. O número público do celular de Eduardo Bolsonaro, filho do presidente da República e deputado federal eleito ano passado, era um dos que mais liderava grupos de WhatsApp em setembro de 2018, segundo Viktor Chagas. Eduardo moderava mais de 30 grupos. Agora o número está desativado. Em seu lugar, entraram números internacionais sem nome ou foto para identificação.
“Há um claro indicativo de que se trata de trabalho profissionalizado, de disparos automatizados, mas isso por si só não é ilegal”, diz Chagas. O problema, claro, é quando essa profissionalização de envio de mensagens em massa se trata de uma fábrica de notícias falsas e informações tiradas de contexto. A Justiça Eleitoral, porém, ainda não encontrou meios de mapear ou rastrear os autores de conteúdos mentirosos e de má fé, como os memes que mentem sobre a questão estudantil.
Crédito: Viktor Chagas/ UFF
A incidência de mensagens nos grupos bolsonaristas de WhatsApp é por certo menor do que na época das eleições. Pelo Monitor WhatsApp, a plataforma que serve como amostra de Trending Topics de grupos abertos do aplicativo, o número de compartilhamento dos principais conteúdos chega a ser dez vezes menor do que em outubro. Uma das hipóteses dos pesquisadores é que agora, após as eleições, há menos financiamentos de disparos em massa profissionalizados do que no segundo semestre do ano passado.
Em outubro de 2018, reportagem da Folha de S. Paulo mostrou que diversos empresários — entre eles Luciano Hang, da Havan — contrataram agências para espalhar mensagens contra o PT no WhatsApp. Cada contrato teria o valor de R$ 12 milhões. A prática, tida como ilegal por consistir em doação de empresas para campanha, ainda continuaria em ação nesses primeiros meses de governo, mas em menor escala. Para os pesquisadores, o levante das redes está crescendo aos poucos com três pautas principais: manter o COAF com Moro, os ataques ao Supremo e a deslegitimação dos movimentos estudantis.
Outro ponto de consenso entre os pesquisadores é que a equipe de Bolsonaro se planejou com antecedência para montar sua estratégia de WhatsApp. As principais evidências são a grande organização hierárquica das redes e, também, dois projetos de lei que o então deputado federal Jair Bolsonaro apresentou em 2017, claras demonstrações de sua preocupação com WhatsApp no futuro. O primeiro deles dizia que apenas juízes do STF poderiam derrubar aplicativos e redes sociais no Brasil e o outro impediria operadoras de oferecer planos de internet com dados limitados; em ambos os casos, a justificativa do parlamentar é a de que as medidas evitariam a ameaça à livre circulação de ideias no Brasil.
Bolsonaro agora tenta se apoiar numa máquina baseada em robôs e mentiras orquestradas — a mesma que o elegeu — para recuperar apoio popular.
Para Denicoli, o ponto de partida da estratégia digital de Bolsonaro contou com uma imensidão de perfis automatizados no WhatsApp e, depois, no Twitter. “No começo da campanha, o número de robôs era muito alto. Eles estavam construindo narrativas em cima dos temas de modo experimental”, diz. “No final, eles conseguiram estabelecer um apoio real das pessoas, muitos compraram a ideia e viraram cabos eleitorais.”
De tanto serem replicadas, as mensagens encontraram seus receptores e adoradores. E a lógica segue no Twitter –um levantamento recente apontou que mais da metade dos seguidores de Bolsonaro é falso. A conclusão foi do Fake Followers Audit, uma ferramenta capaz de determinar a porcentagem de seguidores automatizados — isto é, robôs ou bots — que cada usuário tem. O método é estatístico: a empresa pega uma amostra aleatória de dois mil seguidores e analisa um a um. O software verifica dados que podem caracterizar ou não um perfil falso: número de seguidores, discrepância na localização, inexistência de foto de perfil, alta frequência de posts, baixo número de seguidores, data de criação da conta, dias de inatividade e a linguagem usada. Segundo esses critérios, cerca de 60,9% dos quatro milhões de seguidores de Jair Bolsonaro (mais de 2,5 milhões de usuários) são contas inativas. A companhia estima que, em cada post de Bolsonaro, 17% dos retuítes são feitos por perfis fakes. Embora os próprios autores da ferramenta reconheçam que ela não é infalível, o cálculo é eficaz para estimar porcentagens de seguidores falsos.
Bolsonaro agora tenta se apoiar numa máquina baseada em robôs e mentiras orquestradas — a mesma que o elegeu — para recuperar apoio popular. Mesmo depois de assumir a presidência, o político não se esforçou num discurso apaziguador, de união. No mundo real, ele segue com seu posicionamento contra minorias, numa fantasmagórica luta contra o comunismo e o que chama, sem saber articular, de ideologia de gênero. As redes o acompanham nisso e devem seguir essa lógica enquanto houver lenha para queimar. “A rede é toda mobilizada pela raiva, a gasolina é o conflito”, afirma Denicoli.
O problema que se expôs para o presidente é que nem sempre o WhatsApp pode instigar o ódio e criar uma realidade paralela endossada pela população. Boa parte dos brasileiros não acha que o Carnaval é sinônimo de golden shower e que a universidade é lugar em que todos assistem aula pelados. Ainda que lentamente, a máquina de mentira do clã bolsonarista parece perder sua força.