COOPERAÇÃO SECRETA : “Lava jato” driblou governo brasileiro para colaborar com autoridades dos EUA

No entanto, documentos oficiais do Itamaraty obtidos também pelo The Intercept, contradizem a versão defendida por Dallagnol na resposta ao Ministério da Justiça.

O procurador da República Deltan Dallagnol Fernando Frazão/Agência Brasil

12 de março de 2020, 12h41


Conversas entre procuradores do Ministério Público Federal divulgadas nesta quinta-feira (12/3) pelo The Intercept Brasil , em parceria com a Agência Pública, reafirmaram que a “lava jato” colaborou secretamente com o Departamento de Justiça dos Estados Unidos em investigações sobre o desvio de dinheiro na Petrobras.

Os diálogos dizem respeito a uma visita feita em outubro de 2015 por 17 norte-americanos à sede do MPF em Curitiba. Entre eles estavam procuradores ligados ao Departamento de Justiça (DoJ) dos EUA e agentes do FBI.

Segundo o MP e procuradores, “o contato direto entre membros do Ministério Público de diferentes países é uma boa prática internacional” (leia a íntegra das manifestações no final da notícia).

Seguindo um tratado bilateral assinado em 1997, atos de colaboração em matéria judicial envolvendo Brasil e Estados Unidos são feitos por meio de um pedido formal de colaboração conhecido como MLAT. Nesses casos, cabe ao Ministério da Justiça ser o ponto de contato com o DoJ.

De acordo com as conversas divulgadas hoje, a “lava jato” conseguiu driblar o governo brasileiro, então chefiado pela presidente Dilma Rousseff, para cooperar com as autoridades dos Estados Unidos.

Em 5 de outubro, Deltan Dallagnol, coordenador da operação, chegou a mandar a assessoria do MPF seguir a orientação da comissão dos EUA e não divulgar a visita do DoJ. “Os americanos não querem que divulguemos as coisas”, disse.

Com a visita, os EUA estavam interessados no desvio de dinheiro na Petrobras. Em razão do Foreign Corrupt Practices Act (FCPA), a lei que regula as investigações de corrupção em países estrangeiros, o DoJ pode investigar e punir, nos Estados Unidos, atos de corrupção envolvendo pessoas e companhias estrangeiras que tenham ocorrido em solo norte-americano.

Para isso, basta que os delitos estejam ligados à companhias com ações nas bolsas dos EUA, que a propina tenha sido paga em dólares ou que envolva transferência de dinheiro feita por algum banco dos Estados Unidos.

Governo “indignado”
Segundo os diálogos, o governo Dilma ficou “indignado” ao saber da visita do DoJ e FBI, que não foi comunicada ao Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional (DRCI), divisão do Ministério da Justiça responsável por coordenar a cooperação internacional.

“Eu não gostei da ideia do executivo olhando nossos pedidos para saber o que há”, disse Dallagnol a um colega após o DRCI levantar dúvidas sobre a visita.

Ainda assim, o MPF e Vladimir Aras, procurador responsável pela cooperação internacional na Procuradoria-Geral da República (PGR), responderam ao DRCI que o encontro se limitava a uma “reunião de trabalho”, em que seriam feitas apresentações de “linhas investigativas adotadas pelo MPF e pela PF e pelos norte-americanos no caso lava jato”.

No entanto, documentos oficiais do Itamaraty obtidos também pelo The Intercept, contradizem a versão defendida por Dallagnol na resposta ao Ministério da Justiça. De acordo com os documentos, o DoJ pediu vistos para ao menos dois de seus procuradores, detalhando que eles planejavam viajar a Curitiba “para reuniões com autoridades brasileiras a respeito da investigação da Petrobras”.

Além disso, os norte-americanos se encontrariam com advogados dos delatores da lava jato. “O objetivo das reuniões é levantar evidências adicionais sobre o caso e conversar com os advogados sobre a cooperação de seus clientes com a investigação em curso nos EUA”.

Em fevereiro de 2018, a ConJur já havia noticiado que a presença do FBI no Brasil vinha sendo ampliada desde 2014.

Fundo
De acordo com os diálogos, a multa bilionária a ser paga pela Petrobras ao Departamento de Justiça dos EUA por violação da lei FCPA foi um ponto chave nas tratativas com os procuradores brasileiros.

A “lava jato” pretendia que ao menos 60% dos US$ 1.6 bi fossem direcionados a operação para que fosse criado um fundo de financiamento a iniciativas de combate à corrupção.

Em agosto de 2017, após quase dois anos de negociações, os procuradores de Curitiba finalmente foram comunicados de que o DoJ compartilharia com os cofres brasileiros 80% do valor total da multa.

O valor pago pela Petrobras no entanto, foi menor do que o inicialmente previsto. O acordo garantiu ao brasil US$ 682.560 milhões (R$ 2,5 bilhões). A quantia foi depositada em uma conta na Caixa Econômica Federal.

Em janeiro de 2019, a lava jato assinou um acordo com a Petrobras que previa a criação de uma fundação de direito privado, com sede em Curitiba, para administrar o fundo patrimonial.

Do total, 50% do valor seria usado para ressarcir acionistas e 50% para “projetos, iniciativas e desenvolvimento institucional de entidades e redes de entidades idôneas, educativas ou não, “que reforcem a luta da sociedade brasileira contra a corrupção”.

Outro lado
Ao Intercept, a assessoria de imprensa da operação “lava jato” disse que “eventuais reuniões com autoridades alienígenas — e foram dezenas, algumas presenciais e outas virtuais com diversos países — não necessitam de qualquer formalização via DRCI, mas apenas autorização interna dos respectivos órgãos interessados”.

Também afirmou que “Vários colaboradores procuraram diretamente autoridades estrangeiras – e não apenas os EUA – para formalizar diretamente acordos de colaboração. Isso foi – e é – incentivado pelo MPF”.

Vladimir Aras afirmou ao site que os procuradores “não estão obrigados a revelar ou a reportar esses contatos a qualquer autoridade do Poder Executivo”. Segundo Aras, “o contato direto entre membros do Ministério Público de diferentes países é uma boa prática internacional”.

Ricardo Saadi, ex-chefe da DRCI, disse ao Intercept que não lembrava se o Ministério Público respondeu às suas perguntas sobre a visita de outubro de 2015. Ele acrescentou que “O contato informal e direto entre as autoridades de diferentes países é permitido e previsto em convenções internacionais. Para esse tipo de contato, não há a necessidade de elaboração de pedido baseado no MLAT.”

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