Coronavírus: Médicos podem ter de fazer ‘escolha de Sofia’ por quem vai viver na Itália

Em questão de dias, a Itália tornou-se o segundo país mais afetado pela pandemia do novo coronavírus — e a situação continua a se agravar. O total de casos confirmados ultrapassou 15 mil, e já foram registradas mais de mil mortes.

AFP Image caption Itália tem mais de 15 mil casos confirmados e mil mortes

 

Em questão de dias, a Itália tornou-se o segundo país mais afetado pela pandemia do novo coronavírus — e a situação continua a se agravar. O total de casos confirmados ultrapassou 15 mil, e já foram registradas mais de mil mortes.

O crescimento exponencial de casos levou um grande número de pessoas a buscar atendimento nos hospitais, que já dão sinais de estarem sobrecarregados na região da Lombardia, a mais afetada, e também a mais rica, do país, onde vivem um sexto dos seus 60 milhões de habitantes.

Em meio a esta situação, o Colégio Italiano de Anestesia, Analgesia, Ressuscitação e Cuidado Intensivo (SIAARTI, na sigla em italiano) divulgou um documento em que prevê que a falta de recursos suficientes para tratar todos os pacientes graves pode fazer com que médicos e enfermeiros tenham de escolher quem será admitido nas unidades de tratamento intensivo (UTI) de acordo com suas chances de sobreviver.

O SIAARTI afirma no documento que previsões feitas com base no que ocorre atualmente em algumas regiões italianas apontam para um aumento dos casos de insuficiência respiratória aguda nas próximas semanas.

De acordo com a entidade, 10% dos pacientes diagnosticados com covid-19, a doença causada pelo novo coronavírus, precisam de equipamentos de respiração assistida. Apesar desta condição poder ser curada, sua fase aguda pode durar “muitos dias”.

Isso levará a um “grande desequilíbrio” entre os recursos disponíveis para tratar os pacientes que precisam ser internados nas UTIs e a demanda por esse tipo de serviço.

Por isso, a entidade publicou recomendações que os médicos e enfermeiros devem seguir em um cenário de “medicina de catástrofe”.

‘Escolhas difíceis’

Isso significa fazer “escolhas difíceis” de acordo com a chance de sucesso de tratamento, considerando a idade do paciente, se esta pessoa tem outras doenças, a gravidade do seu estado e a possibilidade de reverter esse quadro.

EPA Image caption Aumento exponencial de pacientes está sobrecarregando hospitais italianos

“A disponibilidade de recursos não é levada em consideração normalmente nesse processo de decisão e nas escolhas feitas para cada paciente, até que os recursos se tornam tão escassos que isso não permite o tratamento de todos os pacientes que poderiam ser beneficiados”, afirma a SIAARTI.

A entidade diz que pode ser necessário estabelecer um limite de idade para os pacientes atendidos nas UTIs, reservando os recursos disponíveis para aqueles que têm não apenas maior chance de sobreviver, mas também viverão por mais tempo após serem salvos.

A SIAARTI destaca ainda que aplicar o critério mais comum de atendimento nas UTIs, de internar quem chega primeiro, também seria fazer uma escolha — de não tratar os pacientes que chegariam depois, diante da falta de leitos para atendê-los.

Quando houver um grande fluxo de pacientes e uma pessoa internada não responder a um tratamento, disse a entidade, a decisão de colocá-la sob cuidados paliativos “não deve ser adiada”.

Decisão drástica, mas ‘absolutamente racional’

Estas podem parecer decisões drásticas, mas, em uma situação como esta, há uma completa saturação dos recursos de UTI, que se cria um “gargalo” no atendimento à população, explica Jaques Sztajnbok, médico supervisor da unidade de tratamento intensivo do Instituto de Infectologia Emílio Ribas.

“Não há como ampliar a estrutura desse tipo de serviço para atender 20 mil pessoas de uma só vez. Então, você precisa analisar quem tem mais chance de sobreviver. Isso assusta e pode parecer cruel, mas é absolutamente racional”, afirma Sztajnbok.

“Se você escolher tratar o paciente ‘errado’, vai usar muito tempo e recursos com alguém que não chegará a ser salvo e deixará de atender duas ou três outras pessoas, que vão morrer (pela falta de atendimento). Em uma situação assim, é melhor salvar um do que nenhum.”

Até agora, o novo coronavírus já chegou a 114 países e a todos os continentes, exceto a Antártida, e infectou mais de 118,3 mil pessoas, levando cerca de 4,2 mil delas à morte.

Do total de casos, a maioria deles foi registrado na China, onde há 80,9 mil pacientes confirmados.

“Não foi à toa que a China construiu hospitais da noite para o dia, que eram basicamente de leitos de UTI. Houve quem achasse aquilo exagero, mas eles aparentemente viram que estavam sendo bombardeados por pacientes em estado crítico e correram atrás para dar conta disso”, diz Sztajnbok.

O mesmo pode ocorrer no Brasil?

No Brasil, já são 77 casos confirmados, segundo o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta.

No entanto, o ministro afirmou em reunião no Congresso com os presidentes das duas Casas e líderes partidários que a expectativa é que haja uma expansão em progressão geométrica nas próximas semanas, de acordo com a Rádio Senado.

Mandetta pediu que sejam liberados R$ 5 bilhões de recursos para combater a pandemia e disse que o Sistema Único de Saúde (SUS), do qual dependem exclusivamente os quase 70% de brasileiros que não têm plano de saúde, não suportará a demanda criada pelo novo coronavírus.

Em coletiva de imprensa, o secretário-executivo da pasta, João Gabbardo, disse que 2 mil leitos de UTI serão direcionados para pacientes com covid-19.

Gabbardo também informou que o SUS deve mudar os critérios para o uso dos leitos destas unidades e explicou que pacientes terminais, por exemplo, não serão levados para este setor nos hospitais.

Eduardo Sprinz, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, diz que a possível sobrecarga das UTIs já vem sendo discutida entre médicos e especialistas, por causa do que ocorreu durante a última pandemia, de gripe suína, em 2009.

“Naquela época, quase tivemos que aplicar um critério semelhante a este da Itália. Houve filas de espera por respiradores em hospitais, foi uma coisa muito dramática”, afirma Sprinz.

O infectologista explica que os estudos feitos até o momento apontam que esse novo vírus é até três vezes mais transmissível do que o vírus da gripe suína, o H1N1, o que pode fazer com que o número de brasileiros infectados agora seja superior.

“Dependendo de como a epidemia se desenvolver por aqui, podemos ter um risco de saturação do sistema de saúde. Estamos trabalhando para que não chegue a esse ponto, mas, se isso ocorrer, talvez chegue o momento em que seja necessário fazer uma ‘escolha de Sofia’.”

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