O coronavírus coloca médicos de todo o mundo diante de desafios inéditos. Quem tratar, se os recursos intensivos são limitados? O apoio de colegas e de órgãos de consultoria ética é essencial, diz especialista
Autoria Andrea Grunau (av) – Quarta, 25 de março de 2020
No contexto médico, “triagem” é um termo com reverberações terríveis, literalmente de vida ou morte: que pacientes tratar, de quais desistir e deixar morrer? Na Itália, devido à desproporção entre o número de casos graves e a falta de recursos hospitalares, a pandemia do coronavírus já colocou profissionais de saúde diante dessa pesada decisão.
O Dr. Georg Marckmann dirige o Instituto de Ética, História e Teoria da Universidade Ludwig Maximilian de Munique, e é presidente da Academia de Ética na Medicina. Em entrevista à DW, ele explica como os princípios da medicina de catástrofes precisam ser aplicados em situações como a atual, passando da ênfase no paciente para a ênfase no bem comum.
Lembrando a eficiência do sistema de saúde alemão, Marckmann acentua a importância de clareza e imparcialidade nas decisões sobre cuidados intensivos. É essencial uma base ética sólida, a ser levada em consideração no caso de recursos insuficientes tornarem inevitável uma triagem: “Ninguém é privilegiado ou prejudicado de antemão, decide-se segundo critérios medicinais e éticos.”
Deutsche Welle: Médicos e enfermeiros da Itália contam, consternados, que não têm mais como tratar adequadamente todos pacientes na crise do coronavírus. Quais diretrizes seguem os médicos encarregados de decidir quem devem ajudar?
Georg Marckmann: Temos diretrizes para situações clássicas de triagem na medicina de catástrofes, ou seja, numa ocorrência de feridos em massa, em que os pacientes são examinados e distribuídos em categorias de tratamento. O que ainda não temos, são recomendações para uma situação como a ocorrida na Itália devido ao alastramento da covid-19, de ter tantos pacientes para as unidades intensivas e respiradores artificiais, que as capacidades de medicina intensiva não bastam.
Triagem é um termo da medicina militar que significa seleção. Em que categorias se selecionam os pacientes?
Há várias: doentes em perigo de vida agudo são tratados imediatamente, o cuidado dos doentes apenas graves é adiado, os levemente enfermos são tratados mais tarde. Os sem chances de sobrevivência recebem um tratamento exclusivamente de suporte, de espera.
O decisivo em situações com um grande número de doentes de que não se pode cuidar devidamente, é termos que passar de uma abordagem centrada no paciente a uma grupal ou populacional. Na primeira, tentamos adequar da melhor maneira o tratamento ao bem-estar e à vontade do paciente individual.
Na visão grupal, tentamos assegurar que os casos de enfermidade e morte fiquem no mínimo possível. Isso coloca os atuantes sob estresse, pois não estão habituados a isso.
Portanto, em situações de triagem é preciso ter outros pontos de orientação. A regra básica é agir de modo que a maioria dos enfermos sobreviva, pois isso é no interesse comum. Se perguntássemos à população “Como lidar com esta situação?”, a maioria provavelmente diria “Sim, a triagem deve visar que no fim a maioria sobreviva.”
O senhor é presidente da Academia de Ética na Medicina. O que especialistas em ética podem fazer pelos hospitais, na epidemia do novo coronavírus?
Não temos que começar do zero. A Sociedade de Medicina Intensiva da Áustria elaborou uma recomendação para a terapia intensiva com pacientes da covid-19, uma diretriz assim também partiu da Suíça. Nova é uma diretiva dos Estados Unidos para sistemas de apoio, como comissões de ética ou o aconselhamento ético.
Não podemos deixar os agentes sozinhos nesta situação. É eticamente necessário elaborar recomendações de como cada um deve lidar adequadamente com a limitação de recursos. É uma situação de exceção para todos os envolvidos. A Alemanha tem um sistema de saúde muito bem equipado, em que, via de regra, não precisamos escolher entre diversos pacientes necessitados de tratamento. Também é importante para a confiança da população definirmos critérios e procedimentos sobre como lidar com a ameaça de carestia de meios de cuidados intensivos.
Numa crise em que faltem vagas nos respiradores e no tratamento intensivo, devem ser tratados os que precisam mais urgentemente de ajuda ou os que têm melhores chances de sobrevivência?
Normalmente vale uma seleção por urgência: os mais enfermos têm acesso aos recursos mais intensivos. Em situações em que a capacidade não basta mais, sempre passamos a uma seleção orientada pelo êxito. É assim em casos de triagem e catástrofe, e também seria justificada numa situação em que não podemos fornecer oxigenação artificial para todos.
A prioridade sempre deve ser tentar ampliar as capacidades, o que se faz intensivamente na Alemanha. Isso é eticamente imperativo, como o é utilizar as capacidades disponíveis de forma ótima, por exemplo: coordenar os leitos de tratamento intensivo, possivelmente também alternar os pacientes.
Os pacientes de covid-19 que precisam de respiração artificial não são distribuídos igual nas regiões. Na área de Heinsberg houve grande número de enfermos, muitos pacientes graves tiveram que ser tratados nos hospitais. Em outras regiões até agora houve significativamente menos casos. É um mandamento de solidariedade utilizarmos conjuntamente os recursos disponíveis da melhor, e que não haja brigas pela distribuição.
Como se constata rapidamente e sem dúvidas qual paciente pertence a qual grupo?
A avaliação do prognóstico dos pacientes tem uma longa tradição na medicina intensiva. Onde estamos um tanto inseguros, é no prognóstico dos pacientes de covid-19. Mas nesse ponto há dados da Itália, onde se tentou estabelecer critérios para avaliar a probabilidade de óbito dos pacientes graves.
O que é preciso fazer pelos médicos e cuidadores?
É muito relevante proteger o pessoal de saúde, com alta prioridade para a disponibilidade de vestes protetoras, máscaras respiratórias, em que continua havendo gargalos de abastecimento. Dependemos de que o pessoal de saúde esteja saudável para poder tratar devidamente dos muitos pacientes de covid-19.
No que se refere à sobrecarga psíquica que as decisões seletivas causam ao pessoal médico, é importante haver prescrições de como tomá-las. Deve haver apoio entre colegas, para que ninguém tenha que decidir sozinho. Órgãos de consultoria ética não podem assumir as decisões, mas podem aliviar as equipes. Seria também importante assistência para os que não dão conta da carga; por exemplo, um telefone de emergência com psicólogos ou sacerdotes treinados para o cuidado pastoral ou orientação de emergência.
Fazemos de tudo na Alemanha para evitar decisões trágicas ou reduzir seu número ao mínimo. Mas se chega o momento, devemos estar preparados e apoiar o pessoal de saúde nessas decisões. Também fica mais fácil comunicar aos familiares e promove a confiança entre a população, se tais decisões, quando inevitáveis, ocorrerem de modo transparente, justo, bem fundamentado do ponto de vista médio e ético.
De que critérios se trata?
É preciso avaliar as perspectivas de sucesso do tratamento médico intensivo. Um critério é o grau de gravidade da dispneia aguda. Além disso, leva-se em consideração se moléstias paralelas relevantes pioram o prognóstico do paciente; e como é o estado geral, por exemplo, se alguém está muito debilitado.
É também importante definir quais critérios não devem ficar totalmente de fora: situação familiar, status social ou histórico cultural. Ninguém é privilegiado ou prejudicado de antemão, decide-se segundo critérios medicinais e éticos.
Acho que nós temos na Alemanha um sistema de saúde altamente desenvolvido, com algumas reservas que podemos mobilizar para cuidar devidamente dos doentes de covid-19. Além disso, temos um sistema de sociedades de médicos especialistas muito funcional e muito ativo.
Já há um posicionamento da Sociedade Alemã de Medicina Paliativa para a abordagem dos doentes ultragraves, cuja vida já não pode ser prolongada. Outras sociedades de especialistas elaboram decisões sobre os recursos médicos intensivos limitados, no contexto da pandemia. Nossa sociedade, a Academia de Ética na Medicina, colocou online algumas recomendações e material de apoio, e se ocupará das possibilidades de ofertas de aconselhamento ético para os que atuam in loco.