Por Luiz Ferreira Jr.
Em um texto anterior, tratamos de apresentar relações equivalentes entre empresas de renome internacional do sistema financeiro, agentes políticos no Estado, e o impactante caso de escândalos publicado em diversos veículos de imprensa do Banco JP Morgan, como salientamos este é um tema relevante à medida que o Estado brasileiro fragiliza-se em sua transição controlada de novo normal institucional. Como dissemos, ademais, tais elementos encontram relevância à medida em que se considere que um Estado fragilizado, como o brasileiro neste momento, possa vir a gerar riscos de degeneração e infiltração de atividades fora de seu escopo normativo e constitucional, inclusive incorporando o crime organizado para fazer funcionar sua própria estrutura (legal e ilegal), como salienta Gilman neste artigo.
Prometemos que apresentaríamos um ensaio sobre o narcotráfico e sua relação complementar (inclusive oficialmente em alguns casos) com as atividades estatais , como também, casos históricos em que ele foi parte do manejo de ações de guerra econômica.
Guerra Econômica entre Império Inglês e Chinês – o passado nunca esquecido pelos orientais
Quando se considera a existência de ação e coordenação de setores de inteligência (obtenção de dados, investigação, avaliação de cenários e soluções) de outros países, ou de organizações internacionais, a colaborar com negócios ilícitos em nossa região, sobretudo em um cenário de submissão de nossa soberania e fragilização institucional no mesmo tempo em que se observa o avanço de facções criminosas como o PCC e o Comando Vermelho (por todo o país e sub região continental), há que se considerar que o narcotráfico regulado pelo Estado já foi, no passado, ferramenta utilizada pelo Reino Unido para equilibrar sua balança comercial frente a China. Em 1839 e entre 1856 e 1860, foi estabelecida uma política com duplo efeito e que fazia utilização do narcotráfico como ferramenta geopolítica de guerra para provocar tensões internas sem o controle dos governos, e ao mesmo tempo como ferramenta de pressão política e de comércio exterior.
É importante ter-se em conta que o ópio foi durante muito tempo utilizado de forma recreativa, mas sobretudo de forma permanente na China, para as pessoas de idade avançada para manterem suas condições de vida, considerando seus efeitos analgésicos e de bem estar e combate a dores crônicas que se incorporam ao corpo de pessoas com o passar dos anos. Sobre característica e história do ópio leia neste link.
Mas nos anos de 1794, o Império da China, sob o comando da dinastia Manchu, era o estado mais populoso e rico do mundo. Ao mesmo tempo que entre 1794 e 1839, a Inglaterra obteve um avanço econômico e tecnológico surpreendente, que levou a mesma junto a Europa ocidental à centralidade da economia política global.
Este impulso se deu por meio do desenvolvimento de diversos mecanismos internacionais de comércio, e um dos produtos importantes neste avanço foi o da exportação de ópio, utilizando-se das plantações e rotas comerciais da Índia que estiveram sob controle do império bretão. Como resultado ocorreram conflitos armados para reestruturar o controle do comércio deste recurso contra o império Chinês. A Inglaterra mantinha, até então, um déficit comercial relativo constante, acentuado pelos conflitos comerciais pelo chá (comércio que os ingleses controlavam) e os processos de ressurreição independentistas dos Estados Unidos. Por isso gestou-se a sedimentação do controle comercial e depois político imperial da Índia como forma de estabilizar estes desequilíbrios econômicos.
Com o controle da nação vizinha à China e utilizando-se do instrumento da Companhia Inglesa das Índias Orientais, deu-se a promoção de comércio ilegal de ópio, com autorização da coroa britânica. Até próximo de 1840, milhares de chineses se fizeram viciados, destinando grande parte de seus recursos para a compra do entorpecente de alto nível de dependência.
No período foi solicitado pelo governo da China que a Inglaterra terminasse com o comércio de ópio, dada a gravidade que se instaurou na sociedade chinesa com uma crise sanitária, mas sem qualquer resultado de acordo. Por isso, em seguida o governo chinês proibiu a venda e consumo de ópio no país.
Muitos comerciantes ingleses foram expulsos do território oriental, a resposta a isso foi a deflagração de conflitos armados com ampla vitória inglesa. No ano de 1842 foi firmado o Tratado de Nanquim, que extinguiu o monopólio de fábricas chinesas, como também abrigou a abertura de cinco portos – Cantão, Amoy, Foochow, Ningbo e Shanghai – com a previsão de que os ingleses tivessem ampla liberdade de ingresso de mercadorias.
Este tipo de abertura imposta foi similar a que se impôs ao Brasil com a abertura dos Portos brasileiros no período de 1808, e que retirou a exclusividade de exploração comercial por parte da colônia portuguesa na atividade portuária, abrindo-se esta atribuição para a Inglaterra. Somado a isso, a China foi obrigada a pagar aos ingleses pelo ópio confiscado pela proibição anterior, e como parte do pagamento dessas dívidas os comerciantes de Hong Kong passaram a ser britânicos, com a incorporação de seu território a Grã Bretanha por 150 anos. Todos os chineses que colaboraram com os britânicos nestes conflitos e atuação no comércio ilegal do narcotráfico seriam perdoados, e enquanto as dívidas não fossem saldadas, o exército britânico permaneceria no território chinês, particularmente em Gulangyu e em Zhoushan.
O resultado foi de bastante desvantagem e submissão dos orientais frente a ação de controle comercial e mesmo territorial da parte do imperialismo ocidental Inglês e secundariamente Francês na região da China e países cercanos. Até hoje, este período impacta em forte ressentimento interno dos chineses frente a humilhação que foram submetidos, este fator é observado em conteúdos de sua imprensa local, até hoje.
Sistema Financeiro e lavagem de dinheiro
Preliminarmente para entender como os processos de lavagem de dinheiro e transferência de capital de países narco produtores e narco exportadores para o exterior passam pela lógica financeira e de lavagem de dinheiro, há que se considerar o fenômeno diretamente relacionado a essa questão que é a política de guerra contra drogas e sua relação direta com a definição de preços de entorpecentes no mercado internacional.
Não é possível considerar que ocorra tráfico de drogas e lavagem de dinheiro ilegal sem a participação ou conivência de atores estatais e de organizações financeiras internacionais. Um mercado, ainda que ilegal, não existe somente pela atuação do traficante, este é somente uma figura que constitui uma estrutura social em que se identifica organizações criminosas atuando por meio do intercâmbio de atores internos e externos a tais organizações e que incorporam outros atores estatais, empresariais e políticos. Evidentemente utilizando-se de atividades não legais para favorecer fixação de preços e transferência vultosa de recursos.
Silva de Souza define crime organizado como uma atividade que depende de três características gerais para seu funcionamento, a saber: corrupção, violência e valor da confiança. Assim como para o mercado capitalista, a consolidação de um poder político centralizado que impôs através da “força legítima” a organização dos mercados foi fundamental, também é essencial que seja feita a paz entre gangues rivais, para que a anarquia não aproveitar os desenvolvimentos negativos, como também uma política que evite danos com agentes públicos e por vezes os incorpore a lógica negocial ilícita. Ou seja, o crime organizado deve ser observado como uma relação social complexa, e por isso seu combate deve incorporar elementos multifatoriais de política pública. Sobre essa dimensão e o desafio de desenvolver um debate progressista sobre política pública de segurança e combate ao crime, vale ler.
Na administração de Richard Nixon, nos anos de 1971 em diante, iniciou-se o modelo de “guerra contra as drogas” que hoje é incorporado pelo discurso do governo de Jair Bolsonaro como equivalente a “guerra contra o terrorismo”. Neste mesmo período acusa-se o envolvimento de setores de inteligência e da burocracia estadunidense em atividades de tráfico de ópio e heroína no sudeste asiático, com a finalidade de financiar operações militares na região do Vietnam, através do transporte em aviões da empresa “Air America” que possuía vínculos com órgãos de inteligência estadunidense. Isso porque, assim como policiais em zonas de conflito severo com criminosos, como também agentes de segurança penitenciária sofrem sintomas de desumanização, medo reativo e prisionização e muitos passam a submeter-se a drogadição (legal e ilegal) e a transtornos de sofrimento psíquico crônicos, passando a ser população alvo de dependência química de entorpecentes ilícitos, como também vincular-se a processos de crime organizado, como é o caso das denominadas milícias policiais.
Este processo desencadeado no Vietnã e que levou a ampliação de consumidores e traficantes de drogas desde militares em guerra no sudoeste asiático foi incorporado ao território estadunidense, com o fim da guerra, levando ao aumento de número de dependentes e a posterior incorporação de políticas generalizadas de prisionização que foram amplamente aumentadas e incorporadas ao modelo de negócio de prisões privatizadas com a instauração das políticas de Reagan e Thatcher. Neste cenário, sobretudo quando os negros estadunidenses e a classe média empobrecida das periferias inglesas ou das antigas regiões mineiras inglesas reivindicavam inserção social em políticas do welfare state, levou a um endurecimento que encontrou alvo central nestes setores de classe que tinham também forte atuação política. Mas o neoliberalismo não poupou estes setores em sua totalidade, sobretudo quando uma sociedade de direitos era desativada em virtude do fim da ameaça socialista após o término da União Soviética e a unificação alemã.
Regionalizando a guerra contra as drogas e o terror em tempos de guerra econômica
Desde então este modelo tem sido expandido para a América Latina, sobretudo para as regiões caribenhas colombianas, do México e países centroamericanos vizinhos, a partir da abertura comercial do NAFTA (Tratado Norte-Americano de Livre Comércio), e finalmente agora, após o golpe de 2016, com a ampliação da submissão internacional brasileira e sua incorporação a atividades conjuntas do exército estadunidense para combate ao crime organizado e terrorismo, como também, pela aproximação do governo brasileiro à OTAN (Organização do Tratado do Atlântico).
Contraditoriamente, muitas experiências internacionais de intervenção agressiva e militarizada em zonas urbanas ou países de terceiro mundo no declarado enfrentamento de organizações criminais como cenário de fundo, acabaram por revelar o estabelecimento de culturas de violência social estimulada e não como se deveria esperar, de tolerância e gestão técnica de conflitos.
Estas ações agressivas de intervenção, muitas vezes vêm associadas a ampliação ou alteração da gestão ilegal do crime organizado mas não o seu fim, ou seja, os atores mudam, mas a cultura permanece. O exemplo disso são os casos de atuação em áreas que policiais ocupam o espaço do crime e atuam como milícias, evidenciados em grupos organizados nos estados brasileiros do Rio de Janeiro, Espírito Santo, entre outros. Mas também inúmeros casos internacionais, como por exemplo, o bombardeio da Iugoslávia com pretexto de enfrentar o tráfico de heroína, e o consequente fortalecimento da máfia albanesa após a destruição da Sérvia.
Por isso o caso de Guerra contra as drogas no Brasil, discurso amplamente difundido pelo atual governo federal, e anunciado como um de seus trunfos de gestão, não pode ser analisado isolado dos processos políticos derivados do Golpe de 2016, das operações da Lava Jato e sua consequente instauração na forma de conflitos intersetoriais no Estado, como não pode deixar de considerar a ocorrência da destruição de setores econômicos nacionais, e a implementação de políticas de desnacionalização de setores produtivos nacionais com Michel Temer e continuadas por Jair Bolsonaro.
No caso brasileiro isso veio combinar a visão de segurança pública e combate ao crime organizado à de segurança nacional, não limitando esta última a defesa territorial pelas forças armadas em regiões de selva e fronteira terrestre, marítima e aérea. Para entender o conceito, veja a palestra proferida pelo General Villas Boas no Instituto Fernando Henrique, no ano de 2017.
Portanto, o que se deve levar em conta é que o crime organizado gestiona negócios. E sendo assim, busca lucratividade. Este negócio encontra formas de desenvolvimento na exploração econômica de pessoas, sua subordinação violenta com ameaças e ocorre dentro e fora de prisões.
Quando o Estado mantém uma política idêntica, ou seja somente oferece violência como forma de dar conta de fenômenos de violência, sem combinar políticas públicas de integração social, valores de convivência pacífica e condições de bem estar, não tende a ter êxito na eliminação da cultura criminógena. É o que se observa no estudo de casos concretos. O uso de laranjas, empresas fantasmas, envio de recursos para o exterior e lavagem de dinheiro são fundamentais para incorporar este capital na mão dos donos deste negócio (para entender a dinâmica deste mecanismo e como a proibição contribui para a taxação dos preços da droga e sua relação com o sistema financeiro leia este link), mas este negócio tem formas de sanção diferentes da regra legal, diferentes da sanção decorrente da lei que observa princípios e direitos. Se algo mais que violência não é apresentado, o Estado tende a assimilar tendências criminógenas no seu interior, e deixar de lado padrões que antes observava como obrigatórios para o exercício do poder de polícia.
Por outro lado, em se tratando da relação e uso de instrumentos de investimento do mercado financeiro e offshores, pela vantagem de atuar em um setor de poder assimétrico ao Estado, o sistema financeiro e suas ferramentas acabam sendo logicamente acomodados a natureza deste negócio “pouco ortodoxo”. Essas offshores, pela fluidez dos negócios financeiros externos, que buscam fugir ao máximo do controle estatal para ter maior mobilidade e rentabilidade, acabam funcionando como alternativas para driblar a fiscalização e pagamento tributário e facilitam a reincorporação posterior em “outros” negócios neste mesmo país, ou fora dele.
Tomando isso em conta, apresentamos novamente, um gráfico que apresenta as dinâmicas de ações criminógenas incorporadas a atividades do sistema financeiro e como as mesmas possuem complementaridades lógicas:
Por isso, deve nos preocupar que em um cenário de acusações de atividades ilícitas da parte de agentes de instituições financeiras. Instituições situadas em meio a guerra comercial entre China e Estados Unidos, certamente encontraremos as mesmas fragilizadas. Com isso, países como o Brasil incorporam a sua sociedade: o agravamento de conflitos institucionais, permanente guerra de desinformação entre setores sociais, “políticas” de estímulo de permanente sensação de insegurança associadas com políticas de tolerância zero.
Considerando ademais, o avanço do crime organizado na região subcontinental, é necessário produzir de forma detalhada uma visão de defesa nacional que se preocupe com a cultura de convivência pacífica das pessoas, com a proteção interna frente a fatores de influência de agentes externos, com objetivo de garantir a soberania nacional e considerando fundamental a preservação de setores econômicos estratégicos. Para isso é necessário estimular uma noção popular de direitos que integre setores que hoje encontram-se aos gritos, com “armas” apontadas um para o outro, estimulados pelo falso argumento de que se deve matar o “bandido”, o inimigo externo, o mal, em vez de criar condições que anulem fatores de desestabilização e divisão social como também de culturas criminógenas. Até o presente momento, com as políticas de tolerância zero, só temos verificado a propagação de um cenário de crise cultural e de insegurança permanente.
No próximo artigo devemos tratar de outra de nossas preocupações na atual conjuntura de defesa da soberania nacional frente a constituição de cenários de conflito cultural e de estigmatização com etiquetamento via redes sociais, por meio grupos políticos “antagônicos”, comportamentos, etc e sua relação com o que se pode denominar: “tecnologia do genocídio”.
Luiz Ferreira Júnior é advogado, Mestre em Direitos Humanos – Universidade de San Martín (Argentina) e Mestre em Comunicação Midiática – UNESP.