“Je pense, donc je suis” (Penso, logo sou). Sendo que ao ser, eu posso duvidar de tudo aquilo que não sou. Como por exemplo a existência do outro. Portanto, além de mim alguém mais é? Eu estive lendo uma obra escrita pela repórter Eliane Brum chamada: “A vida que ninguém vê”. Nesta obra, que ganhou o prémio Jabuti de melhor livro de reportagem do ano de 2007, a autora consegue nos despertar tamanha sensibilidade ao extrair crônicas reais de pessoas comuns, porém por que acreditamos que essas pessoas passaram a existir depois da publicação das crônicas? E se elas existem, existem para quem? Então elas agora existem por que tem uma fotografia de cada um dos entrevistados nas páginas do livro? Por que tem o nome de cada um deles como título das crônicas? Por que teve o depoimento deles sobre suas vidas numa página de jornal? Deixo em aberto estas provocações para o leitor ou leitora refletir, todavia se o título da obra diz que se trata de uma vida “que ninguém vê”, a autora está problematizando o conceito de: como é perceber o esse outro? Pois essas pessoas vivem em lugares públicos onde passam muitas pessoas, porém “vê, na obra, não é só olhar e notar que na calçada existe um amontoado de carne e osso que pede um trocado. “vê” aqui é emprestar a sua subjetividade ao outro para que ele saia da condição de invisibilidade. É importante ressaltar que a invisibilidade é muito mais presente na sociedade do que aquele recorte que costumamos associá-la, pois não é apenas suspendendo o vidro fumê ao aproximar uma criança ou não dando um bom dia a um senhor deitado numa calçada que ela se revela. A invisibilidade é uma causa que gera como efeito a violência, pois independente da classe social ninguém gosta de ser tratado como um fantasma. É possível perceber esse processo de invisibilidade entre médico e paciente, advogado e cliente, líder religioso e fiel, político e cidadão, pobre e mais pobre, classe A/B e classe C, patrão e empregado, o branco e o negro, o heterossexual e os LGBTT+, o marido e a esposa, professor e aluno, estudantes de escola particular e estudante de escola pública etc.
E assim como o meio acadêmico tem despertado no ser humano muito mais a vaidade do intelectualismo do que o altruísmo, não há de se esperar que ele quando saia de lá expresse algo além da sua ilusão de superioridade. Além disso, o “todo/toda” do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) também deixa a desejar na prática em relação aos direitos de muitas existências e a concepção cristã de que “todos somos irmãos” também ocupa o plano teórico, pois muitos ainda não aprenderam a vê o outro como Jesus Cristo viu. Sendo, então, feliz o ditado que diz: “O que os olhos não veem o coração não sente”, já que a gente está cego e surdo para esse outro que não tem nada a nos oferecer sob a ótica do interesse capitalista. E eu não sei se por inocência ou por maldade, nós reclamamos da reação violenta desse outro que quer ser visto, assistido, acolhido, ouvido, mas quem poderá percebê-lo como um ser humano se Madre Teresa de Calcuta e Irmã Dulce já desencarnaram? Para muitos perceber o erro e dizer que alguém deve fazer alguma coisa é mais comum do que ser esse alguém que faz essa coisa. E assim termino dizendo que enquanto existir um ser humano que não for digno de receber de mim e de você um “oi”, “bom dia”, “quer conversar?”, “qual é o seu nome?”, “Vamos entrar?”, “Quer comer ou beber alguma coisa?”, “Eu posso ser útil de alguma maneira?”. Iremos falar de violência como sendo um sentimento que desperta nos corações dos outros sem mais nem por que.
Rodrigo Santana Costa é professor e escritor. Publicou a obra: “Clarecer” em verso e prosa.