Expresso da Meia Noite – Caderno Mensal
Por Ricardo Guerra
Caderno Especial Mensal
Banco Comunitário Palmas: uma experiência de relação econômica e desenvolvimento local, baseada na capacidade de organização do povo.
Por Ricardo Guerra, Felipe Alves e Jobson Lopes
A questão dos Bancos Comunitários é de fundamental importância para se dar visibilidade à existência de outras formas de relação econômica e convivência em comunidades. Essas instituições, além de promover a criação de moeda própria para circulação nos bairros, investem na geração de emprego e renda, através do incentivo à produção e o consumo locais.
Mas, ao falar de bancos comunitários e moedas de circulação própria, é preciso entender a diferença fundamental entre moedas alternativas e moedas oficiais:
Do ponto de vista teórico, todas as moedas são sociais e o que diferencia o Real de uma moeda emitida por um Banco Comunitário é a chancela do Estado, que pode ou não, permitir a sua circulação obedecendo a uma série de restrições.
Para além do Estado, existem outras formas de regulação econômica que não se sustentam na relação moeda-mercadoria.
Existem vários exemplos de experiências no mundo que representam uma visão diferente de se pensar a economia sob a ótica social e a perspectiva local. – a exemplo Canadá, EUA, Alemanha, Áustria, Suíça e Argentina.
Mas, talvez seja no estudo da economia primitiva ou mesmo dos povos estatais do passado – sumérios, egípcios, astecas – que estejam os instrumentos que nos permitirão produzir entendimentos capazes de nos conduzir à uma outra forma de sociedade não baseada na exploração.
Na nossa sociedade, apenas o Estado tem o poder de, ao mesmo tempo, emitir e impedir a emissão de moeda. No caso dos Bancos Comunitários, o Estado pode permitir, por razões políticas, a existência de uma economia paralela.
E foi exatamente assim, ocupando o espaço deixado pela ausência estatal, que o neoliberalismo viabilizou a existência dos Bancos Comunitários criando uma abertura para a existência de tais instituições, paralelamente ao Estado.
Nesse contexto, um debate em torno das moedas sociais nos anos 90, deu margem a esperançosa crença de que uma outra forma de relação econômica e convivência em comunidades era possível.
Contudo, essa esperança parece ter sido sepultada com a crise na Argentina no final dos anos 90, quando a população correu aos bancos para sacar dinheiro em moeda oficial ( ao invés de apostar em outro modelo econômico), já que ocorreu a perda total do valor do Peso.
Foi nesse momento que surgiu a experiência do Banco Palmas, em Palmíria, periferia de Fortaleza (CE), o primeiro banco comunitário do Brasil, cujo objetivo era estimular a produção e o consumo locais, através de empréstimos com juros baixos e criação de moeda própria para circulação no bairro.
Mas, a história começou bem antes, no ano de 1973, quando a prefeitura de Fortaleza decidiu desapropriar cerca de 1500 famílias da zona costeira da cidade, por interesses de especulação imobiliária.
Essas pessoas foram transferidas para um local sem a mínima infraestrutura de moradia, a cerca de 20 quilômetros de seu local de origem.
Esta seria uma história semelhante à tantas outras Brasil afora, caso a comunidade não tivesse se unido e iniciado um movimento de luta por dignidade, que culminou no primeiro banco comunitário do Brasil.
Inicialmente, a comunidade do bairro Conjunto Palmeiras não tinha água, luz ou qualquer tipo de infraestrutura. Aos poucos, a população foi se organizando para construir os barracos e viu a necessidade de pressionar o governo local para instalar saneamento básico e energia elétrica no local.
Em janeiro de 1990, realizou-se no bairro o primeiro seminário “Habitando o Inabitável”.
A proposta era corajosa: urbanizar o Conjunto Palmeiras em 10 anos. Foram realizados diversos mutirões para construção de praças, canais de drenagens e outras obras de infraestrutura.
Em janeiro de 1997, a associação de moradores organizou o 2º seminário “Habitando o Inabitável”. Alí se concluiu que, apesar da urbanização ter sido completada em menos de 10 anos antes do prazo estabelecido, a população ainda vivia na pobreza.
Diante disso, foi estabelecida uma segunda meta, ainda mais ambiciosa que a primeira, que consistia em um projeto de geração de trabalho e renda, cuja pergunta fundamental era: “Por que somos pobres?”.
A resposta parecia óbvia, já que pobre é aquele que não tem dinheiro. Os moradores, então, fizeram uma somatória da renda de todas as famílias da região e chegaram a conclusão que, do montante total dessa renda, apenas 20% das pessoas fazia suas compras dentro do próprio bairro, de modo que grande parte da renda familiar era escoada para fora do mesmo, através de consumo ou de empréstimos bancários.
Cria-se, assim, a moeda Palma, inicialmente através de concessão de crédito e de criação de um cartão (Palmacard).
No início não foi fácil. Foram duas ações judiciais através de denúncias do próprio Banco Central, uma delas envolvendo o crime de falsificação de moeda. A comunidade resistiu às investidas, ganhou os casos na Justiça, e hoje é referência de economia solidária no país e na América Latina.
Em 2005, surgiu o Instituto Banco Palmas, ao qual foi foi articulado o “Projeto de Apoio aos Bancos Comunitários”, juntamente com a Secretaria Nacional de Economia Solidária (SENAES/MTE).
Dessa forma, funcionando como uma alternativa ao modelo tradicional de câmbio do capitalismo, o Banco Palmas apresentou uma nova forma de relação econômica e de convivência em comunidade.
Mas, isso não significa dizer que essa experiência representou a sedimentação de um caminho para a superação do modelo econômico capitalista.
Nem mesmo na Venezuela, onde o Estado fez um amplo investimento na economia local, baseada no modelo brasileiro do Banco Palmas, isso foi possível.
No entanto, quando o Estado permite, tem interesse no modelo e não interfere na sua gerência, as possibilidades de viabilizar o funcionamento de uma moeda social e do banco comunitário atingir seus objetivos sociais, são ampliadas.
Assim, podemos dizer que a experiência dos bancos comunitários, apesar de não significar uma caminho de transição para o socialismo, representa uma importante alternativa ao modelo que está posto e cumpre uma importante função pedagógica.
E quando percebermos que um bairro pode criar uma moeda e estimular o desenvolvimento territorial e social, fica mais fácil compreender a indignação de grande parte da população, ante a falta de iniciativa do Brasil para, imprimir dinheiro ou fazer uso das reservas paradas na conta única da União, para ajudar as pessoas a ficar em casa e se proteger nesse momento de pandemia.
O exemplo do Banco Palmas demonstra que é possível transformar o ambiente econômico, a partir da organização de um sistema próprio de operar o consumo e promover o desenvolvimento local, sob uma perspectiva que ultrapassa o assistencialismo e busca articular financiamento, produção, comercialização e geração de emprego local.
Dessa forma, ao lançar luzes sobre essas experiências de relações econômicas estabelecidas fora dos parâmetros tradicionais do sistema capitalista, reforçamos a importância de acreditar na capacidade de organização do povo e de se investir em ações que possam ajudá-los a viabilizar o processo de democratização do desenvolvimento por eles construídos.
Referências utilizadas e fontes para o aprofundamento do leitor: http://www.institutobancopalmas.org/artigos-e-pesquisas-academicos/