Forró em Ipirá? O olho cego vagueia procurando por um!

O olho cego vagueia procurando por um

Foto: Iliustração/Google

Por Tatiane Araújo

Gostaria que lembrassem muito de mim; que esse sanfoneiro amou muito seu povo, o Sertão. Decantou as aves, os animais, os padres, os cangaceiros, os retirantes. Decantou os valentes, os covardes e também o amor. Hoje, após quase 30 anos da morte do Rei do Baião, tais palavras parecem confirmar o imensurável legado da música de Gonzaga à cultura brasileira como um todo, em especial à nordestina. Entretanto, essas mesmas palavras também parecem contrastar com tudo o que se vê e se ouve hoje no que diz respeito à valorização da cultura nordestina, ao autêntico forró e às tradições juninas.

No que tange às festas juninas especificamente, é claro que as alusões a aspectos peculiares da cultura e da identidade nordestina ainda se fazem presentes, mesmo que de forma muitas vezes aleatória e descontextualizada. Mas o que realmente tem me inquietado é que cada vez menos se produz e se ouve o autêntico forró com triângulo, sanfona e zabumba; cada vez mais os excessos da modernidade atropelam a tradição; as quadrilhas, cada vez mais estilizadas e excessivamente coreografadas, têm perdido a graça da espontaneidade e da previsibilidade; há cada vez menos sanfoneiros no mercado; cada vez menos músicos se inspiram em figuras como Gonzaga, Dominguinhos ou até mesmo no despojado e irreverente Genival Lacerda, só para citar alguns.
O autêntico forró, para ser identificado e reconhecido hoje, precisa do sobrenome pé-de-serra, pois o eletrônico e o universitário que nunca se forma já soam como comuns, de tão incorporados que já estão ao gosto popular. Não estou a fazer um apelo meramente saudosista das nossas tradições, nem estou a me fechar para o novo, mas, no período de festas juninas, é impossível não perceber a ausência do forró. Tratando mais precisamente do São João de Ipirá, isso se torna absurdamente evidente.

Gonzagão também dizia que “pelo roncado do fole se conhece o tocador”, mas aqui em nosso arraiá, bandas que se vendem como de forró tocam sertanejo universitário a noite inteira, com recheio de pagode, calda de arrocha e cobertura de lambasaia. E, muitas dessas bandas, como numa espécie de acordo tácito entre elas, sempre usam a mesma fórmula para ludibriar o folião sequioso por forró: tocam no meio e no final do show a tão animada e conhecida “Frevo Mulher”, de Zé Ramalho (é quando o vento sacode a cabeleira, a trança toda vermelha…). Assim, o folião se satisfaz e sente que dançou forró.

Para foliões menos exigentes, está tudo certo: o importante é ir para a rua, curtir, beber e dançar, pouco importando se é forró ou não. Mas, para pessoas como eu, que vão à rua em busca de dançar forró, a decepção é a única certeza. Desse modo, por duas vezes em três dias de festa, assim que eu ouvi uma dessas bandas cantar irritantemente um tal de “senta, senta, senta…”, olhei para meu marido e parceiro de forró e disse irredutível: vou deitar! E assim fiz, abandonei a festa e fui para casa dormir.

Na minha humilde compreensão das coisas cotidianas, durante a única época do ano em que as pessoas disponibilizam seus ouvidos e pés especialmente para o forró, ninguém deveria privá- las disso. Durante o resto do ano, todos ouvem e dançam de tudo, seria muito pedir que ao menos no São João se tocasse forró? E o poder público contratante das bandas deveria ao menos fazer esta simples exigência a esses grupos que se dizem de forró: que toquem forró! E nem precisa ser exatamente o forró de Gonzaga, pois certas bandas ignoram totalmente o forró, até mesmo o eletrônico ou o universitário.

Sem medo de cair no exagero, afirmo categoricamente que a fórmula se repete ano a ano: algumas bandas contratadas tocam o repertório que usam ao longo do ano e acrescentam Frevo Mulher para convencer as massas, as quais, como num transe coletivo, respondem positivamente cantando e descendo até o chão os hits da moda, num frenesi inexplicável. Se Gonzaga queria ser lembrado, aqui, no arraiá do Camisão, ficou só na simbologia! E eu, que pareço ser a única insatisfeita em meio a tudo isso, continuo em busca do forró, meu olho cego vagueia procurando por um.

Ipirá, 24 de junho de 2019

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