Domingo, 19 de Janeiro de 2020 – 11:20
por Ricardo Kotscho | Folhapress
Os vizinhos do Edifício Caraguatatuba, nos Jardins, onde ele mora há mais de 40 anos, voltaram a ouvir o som do piano no apartamento do último andar.
Foi pouco antes do Natal. João Carlos Martins, 79, voltou a tocar de uma hora para outra graças a uma luva adaptadora que lhe devolveu os movimentos dos dedos (menos o médio da mão direita).
Em janeiro do ano passado, tocando apenas com os polegares, o pianista que virou maestro tinha se despedido do piano, mais uma vez, em grande estilo, em uma apresentação no programa de TV “Fantástico” e havia dito que, dessa vez, seria para sempre.
O que aconteceu nesse meio tempo? Pouco antes do Natal, ao final de um concerto em Sumaré, no interior de São Paulo, depois de muito esperar na calçada, um desconhecido conseguiu entrar no camarim para lhe entregar um estranho par de luvas pretas.
“Ele deve ter pensado que eu era maluco”, lembra o designer industrial Ubiratã Bizarro Costa, 55. Foi exatamente o que Martins pensou, já acostumado com as figuras que lhe aparecem nos camarins prometendo curas milagrosas.
Duas semanas depois de testar as luvas biônicas, que quebraram de tanto ele tocar com força, convidou Bira para ir a seu apartamento. O artesão anônimo tinha feito o primeiro protótipo baseado apenas em fotos e vídeos das mãos do pianista projetadas em 3D. Na semana passada, Martins foi à casa de Bira para experimentar e ajustar um novo protótipo.
Com hastes de aço sobre os dedos, que funcionam como molas, presas a uma placa de fibra de carbono, as luvas mecânicas cobertas com neoprene custaram a Bira R$ 500 com a compra de material.
“Eu não sei te explicar, mas essa engrenagem fez com que, ao dedilhar o piano, meus dedos fossem e voltassem à posição normal. Antes, minhas mãos ficavam sempre fechadas”, diz o pianista.
De lá para cá, cinco protótipos depois, ele não tira mais as luvas nem para dormir. É para se acostumar a ficar com as mãos novamente abertas. “As luvas vão amoldar as mãos ao cérebro com o tempo. Em breve, vou tocar de novo o concerto de Bach em ré menor”, anima-se o velho novo pianista.
Bira se especializou em design para produtos automotivos, mas nos últimos quatro anos começou a fazer protótipos de adaptadores para pessoas com deficiência. Ao ver Martins no “Fantástico”, ele começou a pensar numa solução para o maestro.
Em 2018, na última das 24 cirurgias que já enfrentou, o médico Rames Mattar eliminou as dores que Martins sentia desde que caiu sobre uma pedra, jogando bola no Central Park, em Nova York, em 1965, o primeiro de uma série de acidentes em sua vida.
Sem dores, mas também sem ter mais movimentos dos dedos, João Carlos Martins, ícone da música clássica mundial, já parecia conformado quando apareceu o artesão Bira. “É um recomeço. Na primeira vez em que consegui tocar com todas as teclas, fiquei com lágrimas nos olhos. Há 21 anos, eu não tocava com a mão direita. Sentir de novo todo o teclado do piano, ouvir o som…”
Bach, Mozart, Liszt, todos vão ressurgindo na ampla sala-estúdio durante a gravação feita para a TV Folha. “Um, dois, três, quatro, vamos de novo”, repete várias vezes. Perfeccionista e teimoso, com uma paciência infinita, ele toca até não errar nenhuma nota, um erro que só ele percebe.
Bira ainda não o ouviu tocar, mas estará como convidado especial na plateia dos três concertos marcados para o dia 25, aniversário de São Paulo, quando vai estrear as luvas.
A maratona começa às 10h no Theatro Municipal, com a Orquestra Bachiana Filarmônica Sesi-SP. Depois, vai para a av. Paulista, em frente à Fiesp, às 14h. E termina às 16h, nas escadarias do teatro, com a Orquestra Sinfônica Municipal, que só apresentará obras de Villa-Lobos, na abertura das comemorações da Semana de Arte Moderna de 1922.
“O que são 80 anos na vida de uma pessoa?”, ri, quando lhe pergunto como consegue manter o pique depois de ter se apresentado em mais de 6.000 concertos como pianista ou maestro mundo afora.
“Desde que eu fui diagnosticado com distonia cerebral, em 1958, passei a dormir pelo menos 15 minutos antes de cada espetáculo. Acordo como se estivesse começando o dia e entro com tudo no palco.”
Enquanto escrevo essa reportagem, Martins me liga entusiasmado para contar que está tocando muito melhor do que no dia da gravação de mais de quatro horas de entrevista. “Pena que vocês não estão mais aqui…”
Tudo o que fala, faz questão de provar. Pede a toda hora ao seu assistente Rivélcio Araújo da Silva, 36, o Geo, para buscar álbuns com fotos, recortes de jornal, críticas da imprensa internacional. Mostra vídeos e fotos no tablet e no Instagram, e chama a mulher, Carmen, sua maior fã, para testemunhar o que está contando.
O que o deixa mais feliz é mostrar as plateias que lotam as apresentações da Orquestra Bachiana Filarmônica, por ele criada em 2003, quando virou maestro, para poder continuar sua carreira de músico.
Começou com 18 músicos, que reuniu no seu apartamento, “aí onde você está sentado agora”. Hoje, são 65, 30 deles formados por ele mesmo na Orquestra Bachiana Jovem, que juntos já se apresentaram para 16 milhões de pessoas ao vivo, em 1.500 concertos. Agora a orquestra é uma só.
Em grandes metrópoles ou pequenas cidades, a orquestra toca em tudo quanto é lugar: teatros, ginásios esportivos, shoppings, igrejas, escolas, praças, onde der para colocar cadeiras e juntar gente.
Com o apoio da Fundação Banco do Brasil e do Sesi-SP, a OBF tem 518 orquestras parceiras espalhadas pelo país. Toda segunda-feira, ele reserva algumas horas para analisar os vídeos que lhe mandam. “Esse é o meu legado.” Vai longe o tempo em que ele mesmo saía em carro de som para convidar moradores das cidadezinhas, que não tinham o hábito de ouvir música clássica.
Ele gosta de repetir uma frase que ouviu de seu pai, José da Silva Martins, que era representante comercial: “O impossível só existe no dicionário dos tolos”.
São quase 17h, e ele descobre que ainda não almoçou.
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