Presidente mantém disputa com governadores João Doria e Wilson Witzel, enquanto continua a fazer declarações descoladas do sentimento popular. Panelaço se repete por quinto dia
Ao contrário de outros chefes de Estado que foram à TV fazer apelos dramáticos, Bolsonaro investe em aparições frágeis em seu papel de líder, chegando a rebater diretrizes mundiais, ao se colocar contra, por exemplo, a proibição de cultos em igrejas, foco de aglomeração de pessoas e um terreno fértil para proliferação do vírus. Nos últimos dias, chamou a Covid-19 de “gripezinha”, a preocupação com a epidemia de “histeria”, e disse que o objetivo de quem alarma a população é paralisar a economia para acabar com o Governo dele. “Se a economia afundar, afunda o Brasil. Qual o interesse? Se afundar, acaba o meu governo. É uma luta de poder”, afirmou em entrevista na segunda (16).
As falas do presidente sempre foram corrosivas, mas agora causam muito mais impacto em meio a tempos de calamidade pública. Bolsonaro tem exposto inabilidade com a situação inédita que os brasileiros vivem de se verem obrigados a ficar em confinamento, temendo serem abatidos pelo coronavírus ou que a morte chegue a pessoas próximas. Em entrevista ao programa do Ratinho, na TV, na sexta à noite, Bolsonaro preferiu entoar o pragmatismo ao analisar o momento. “Vai morrer alguns de vírus? Sim, vão morrer. Alguns porque já tinham alguma deficiência [doença pré-existente], outros porque serão pegos no contrapé. Lamento. Minha mãe de 92 anos, se pegar algo, acho que nos deixa. Mas não podemos criar esse clima todo que está aí, prejudica a economia”, afirmou.
Bolsonaro virou notícia mundial ao cumprimentar um aglomerado de apoiadores na porta do Palácio do Planalto em plena epidemia no dia 15. Desde então, ficou claro que sua postura errática é um elemento extra para o Brasil na luta contra o coronavírus, quando o país já tem clara a sua sentença, segundo o ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta. Em breve haverá um pico da doença e se o país não tomar as medidas radicais para evitar o trânsito de pessoas, a rede de saúde, pública e privada, entra em colapso em abril. Alguns Estados, como o Rio de Janeiro, no entanto, já falam em um sistema colapsado dentro de duas semanas. Mandetta tem comandado a situação, em aparições diárias mais serenas para explicar o quadro do Brasil, o que o fez ganhar relevância entre os brasileiros. Neste sábado, a equipe do Ministério da Saúde prometeu multiplicar os testes para detectar o coronavírus nos hospitais, uma medida recomendada pelos países que controlaram a epidemia.
Irritados com a postura do presidente, os brasileiros começaram uma sequência de panelaços diários desde a última terça-feira, 17, em vários pontos do país. Uma pesquisa recente da consultoria Atlas Político mostrou que 65% dos entrevistados estão insatisfeitos com a gestão de Bolsonaro sobre a crise do Covid-19. Três pedidos de impeachment já foram apresentados no Congresso contra Bolsonaro, e há um quarto a caminho.
Bolsonaro, por sua vez, tem colocado energia na disputa política com eventuais adversários políticos que cobram uma postura mais arrojada do Governo do que em dar ênfase à gravidade que o Covid-19 significa ao país. Em vez de convocar um pacto nacional convidando todos os governadores para trabalharem juntos as soluções para a epidemia, repete publicamente queixas sobre governadores, especialmente os de São Paulo e do Rio de Janeiro, João Doria (PSDB) e Wilson Witzel (PSC). Os dois Estados acumulam mais óbitos e casos de infectados. Ambos cobram medidas drásticas para evitar a circulação do vírus, ao contrário de Bolsonaro. Neste sábado, o governador João Doria, que já conta 15 mortes e quase 400 infectados, decretou a quarentena em São Paulo, o que Bolsonaro considerou um gesto calculado. “Ele está se aproveitando desse momento para se promover”, afirmou ele à CNN.
Doria tem feito queixas reiteradas sobre o presidente neste momento por tratar a epidemia que toma o país com mais cuidado. “Gostaria de ter um presidente que liderasse o país em uma crise como essa, e não minimizasse uma questão tão grave”, afirmou ele, em uma das coletivas diárias das quais participa. Bolsonaro devolveu a alfinetada do governador tucano: “Os que me criticam dizem que não tenho liderança. Digo a eles: a eleição de 2022 ainda está muito longe”.
“É inaceitável a falta de dialogo e bom senso. Nunca imaginei viver isso na democracia”, reclama o governador do Rio de Janeiro, Wilson Witzel. No Rio, já há 119 casos confirmados, e três mortes. Um dos infectados foi descoberto na comunidade da Cidade de Deus, um alerta preocupante para a população das favelas, onde a infraestrutura é precária, num ambiente favorável à proliferação da doença. Ao menos os governadores do Norte e Nordeste conseguiram arrancar do presidente o compromisso de uma videoconferência nesta segunda.
Como se não bastasse o clima belicoso nacional, o filho do presidente, deputado Eduardo Bolsonaro, gerou um incidente diplomático com a China no dia 18 com uma série de tuítes em que busca demonizar a China por causa da doença, emulando a tática do presidente americano Donald Trump. “Mais uma vez, uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. A culpa é da China e liberdade seria a solução”, escreveu o deputado, que gerou uma resposta inédita do embaixador da China no Brasil, Yang Wanming. Ele cobrou um pedido de desculpas ao seu povo e disse ao deputado que ele “precisa assumir todas as consequências”. O assunto continua pendente. O jornal Valor noticiou que o presidente Bolsonaro tentou falar com Xi Jinping, sem sucesso. O resumo da ópera foi dado pelo governador Flavio Dino, do Maranhão: “Não é hora de brigar com a China nem é hora de brigar com os governadores. É hora de brigar contra o vírus, a pandemia”.