“Não é um trabalho normal, é uma missão de vida”

Em hospital de campanha na Grande São Paulo, profissionais lutam para combater a covid-19 e, ao mesmo tempo, manter a saúde psicológica dos pacientes. "Ninguém quer estar aqui", diz psicóloga.

Hospital de campanha foi montado no principal ginásio esportivo de Santo André

“Não é um trabalho normal, é uma missão de vida”

  • Data 25.06.2020
  • Autoria Gustavo Basso (de Santo André)

Em hospital de campanha na Grande São Paulo, profissionais lutam para combater a covid-19 e, ao mesmo tempo, manter a saúde psicológica dos pacientes. “Ninguém quer estar aqui”, diz psicóloga.

“Cheguei aqui anteontem e, desde então, para passar o tempo conto os quadrados formados pelas estruturas do teto. E converso com minha vizinha de cama”, conta Dora Simão Silvério, paciente do hospital de campanha Pedro Dell’Antonia, montado no principal ginásio esportivo de Santo André para receber infectados pelo novo coronavírus.

Um córrego e uma avenida separam os dois principais hospitais de campanha do município na Grande São Paulo. Na região do ABC, que concentra grande parte da produção industrial nacional, apenas Santo André e São Caetano montaram estruturas provisórias de combate à covid-19, a doença causada pelo coronavírus Sars-CoV-2.

“São estruturas de retaguarda, com o papel de estabilizar e curar pacientes leves a moderados, deixando mais espaço na rede hospitalar para os casos mais graves”, explica o médico José Roberto Dente, diretor do hospital Pedro Dell’Antonia.

Ao chegar, vindos de instalações de saúde básicas como as Unidades de Pronto Atendimento (UPAs), os pacientes são encaminhados à tomografia, principal método de diagnóstico da covid-19. Foi esse exame que revelou o tamanho do dano no pulmão de José Barbosa de Souza, de 70 anos, internado há três dias.

“Eu estava com dor nas costas, e um médico me receitou dipirona. Por engano, tomei 40 gotas de um remédio para colesterol, e, por precaução, fui ao hospital”, conta o aposentado. Assim, por acaso, Barbosa descobriu que fora infectado com o novo coronavírus. “Depois de uma radiografia, fui encaminhado diretamente para cá”, diz.

Santo André também vem recebendo pacientes de outros municípios, como Diadema. A cidade vizinha tem uma das piores taxas de mortalidade por covid-19 no país. A cada cem pessoas de Diadema diagnosticadas com a doença, quase seis acabam perdendo a vida. O baixo IDH da cidade aponta para algo que já vem sendo observado no município de São Paulo: ao contrário do que ocorreu em países como Itália e Espanha, no Brasil a gravidade da epidemia é medida pelo local onde o paciente mora, e não apenas por sua idade.

De Diadema veio Geci Pinheiro, de 69 anos, missionária de uma igreja evangélica. Deitada na ala de pacientes em observação – segundo nível na escala de gravidade, que vai de leve a crítica em três estágios – ela passa o tempo cantando hinos religiosos. “Estou um pouco cansada de ficar aqui, mas tento me divertir”, conta a idosa, que diz ainda que, segundo parentes, há mil pessoas orando pela recuperação dela.

Na ala de pacientes, Fabiane Teixeira, de 31 anos, reclama do exame para medição vírus. Conhecido como swab, é realizado inserindo um cotonete longo no nariz e na garganta. Após o desconforto, ela conta que o contato com as pacientes vizinhas ameniza a situação.

“Pra passar o tempo, só conversando muito! Aqui deste lado já se formou a gangue das velhinhas”, afirma, apontando para os leitos vizinhos. “É difícil passar o tempo sem nada pra ajudar, então fazemos amigas. Os contatos de telefone já estão todos anotados para quando eu sair aqui.” Apontada como membro da ‘gangue’, Maria Cleusa Teixeira, de 64 anos, diz que o apoio psicológico é o que mais ajuda, uma forma de respeito. “Não há nenhum luxo, mas é do que precisamos para nos recuperar.”

Mente sã, corpo são

Para manter esperança e a saúde psicológica, muitos pacientes com covid-19 recorrem à fé e à espiritualidade. A isso, soma-se o apoio de psicólogos, que entre outras funções, facilitam o contato entre doentes e parentes, por meio de visitas virtuais utilizando tablets exclusivos da equipe. Para evitar novas contaminações, celulares e objetos pessoais são vetados no hospital.

“O paciente chega ao hospital de campanha com muito medo e uma imagem terrível de que o próximo passo é o caixão. Por isso é nosso papel desconstruir essas ideias. Quanto mais equilibrada estiver a mente, melhor e mais rápida é a resposta clínica”, diz a psicóloga Pollyana Camilo. Ela aponta que o cortisol, hormônio do estresse, acaba minando a imunidade, e muitas vezes se vê uma piora da saúde devido ao quadro emocional.

Vestindo um crachá com foto, pouco menor que uma folha de papel sulfite e projetado para permitir que os pacientes vejam o rosto dos profissionais escondidos atrás de camadas de Equipamentos de Proteção Individual (EPIs), a goiana explica a realização sentida com o trabalho, iniciado em 22 de abril.

“É um clichê, eu sei, mas não há modo melhor de explicar: cada paciente é o amor de alguém, e como nós também somos o amor de alguém, acabamos nos identificando. Ninguém quer estar aqui. Pensar na família e em coisas positivas é um caminho importante para a cura”, afirma Pollyanna.

Doença sistêmica

O protocolo de tratamento no hospital de campanha não envolve a cloroquina ou sua derivada hidroxicloroquina, cujo uso em pacientes com covid-19 é fortemente defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. Em seu lugar, os médicos vêm utilizando um anticoagulante, uma vez que o coronavírus provoca a coagulação do sangue, o que pode resultar em complicações sérias, como infarto ou Acidente Vascular Cerebral (AVC), mais conhecido como derrame.

“O coronavírus não causa uma infecção apenas do sistema respiratório, como muitos pensam. A covid-19 é uma doença sistêmica, que afeta o corpo em diversas frentes”, explica Vitor Chiavegato, gestor da Secretaria Municipal de Saúde à frente do complexo de hospitais de campanha da cidade.

É esse caráter sistêmico da doença que representa o maior desafio para os médicos e demais responsáveis pelo tratamento dos pacientes. Segundo dados do Ministério da Saúde, 7,4% dos brasileiros têm diabetes, 24,5% têm hipertensão, e 20,3% estão obesos.

“Esse novo coronavírus tem uma ‘atração’ pelas células adiposas, de gordura, e em vez de usá-las e passar para o resto do corpo, vai se multiplicando, concentrado nessas células até migrar para o resto do organismo, e aí vai com uma carga viral muito grande e súbita, provocando uma tempestade de citocinas. O termo médico se refere ao processo inflamatório rápido que ocorre e acaba causando uma piora na saúde dos doentes de covid-19 repentina”, diz o médico Roberto Dente sobre a relação entre o vírus e comorbidades.

Suspeita-se que a tempestade de citocinas tenha sido a principal causa de morte na pandemia da gripe espanhola de 1918 e no caso de outras doenças respiratórias causadas por coronavírus, como a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) e a Síndrome Respiratória do Oriente Médio (Mers).

O diretor relata que, das cerca de 900 pessoas que passaram pelo hospital de campanha, cerca de cem precisaram ser encaminhadas para uma UTI, e 37 acabaram morrendo. Ele afirma que firmou com a prefeitura um contrato até julho para gerir o hospital e que não pretende estender o prazo.

“Todo esse tempo convivendo com isso é uma carga emocional muito grande. Venho tomando antidepressivo, ansiolítico, sinto que estou trabalhando durante o sono. É uma responsabilidade muito grande, não consigo encarar isso aqui como um trabalho normal, mas como uma missão de vida”, desabafa o médico.

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