O empresário André Luiz Nobre, de 36 anos, faz parte de um grupo que vem crescendo no Brasil desde que o Estatuto do Desarmamento entrou em vigor, em dezembro de 2003. Ele tem seis armas de fogo em casa.
Dados da Polícia Federal, requeridos pelo Instituto Sou da Paz via Lei de Acesso à Informação, mostram que a quantidade de armas vendidas no comércio legal entre 2004 e 2017 já supera o número de unidades entregues voluntariamente por meio da campanha do desarmamento, criada em 2004.
Entre 2004 e 2017, foram vendidas 805.949 armas de fogo no Brasil de forma legal, segundo a PF. No mesmo período, a população entregou voluntariamente 704.319 unidades.
Esse crescimento das vendas vem puxado principalmente por pessoas físicas, diz Ivan Marques, diretor executivo do Instituto Sou da Paz. O aumento caminha junto com o discurso do uso da arma como defesa pessoal em meio ao agravamento da violência.
O presidente eleito, Jair Bolsonaro (PSL), promete flexibilizar a posse de armas no Brasil “para todo mundo”. Quanto ao porte de arma (andar armado na rua), Bolsonaro já se posicionou a favor no caso de vigilantes e caminhoneiros.
Mas as tentativas de facilitar a compra de armas e de flexibilizar o porte para mais categorias vêm de longa data, e o resultado são diversas alterações no texto do Estatuto do Desarmamento.
Prevalece entre pesquisadores nacionais e internacionais a visão de que uma sociedade armada é menos segura. Já quem defende o acesso de cidadãos a armas de fogo argumenta que trata-se de um direito individual.
A maior parte da população brasileira (55%) concorda com a afirmação de que a posse de armas deve ser proibida, pois representa ameaça à vida de outras pessoas, segundo pesquisa Datafolha divulgada em outubro. Por outro lado, 41% acham que possuir uma arma legalizada deve ser um direito do cidadão, para que possa se defender.
O empresário André Luiz comprou sua primeira arma há 11 anos, já sob o guarda-chuva do estatuto. Antes, ele já tinha licença para atirar de forma esportiva, uma permissão conhecida como Certificado de Registro (CR). Depois, pediu autorização da Polícia Federal para ter direito à posse de armas. “É um processo lento e burocrático”, diz. No caso dele, foram dois meses para conseguir o CR e mais dois para a compra.
Hoje, qualquer brasileiro acima de 25 anos, mesmo que não atue na área de segurança, pode comprar uma arma desde que comprove capacidade técnica de manuseio (com laudo emitido por instrutor de armamento e tiro credenciado pela Polícia Federal) e aptidão psicológica, comprove atividade lícita, residência fixa e idoneidade, apresente certidões negativas de antecedentes criminais e não responda a inquérito policial ou a processo criminal.
Para provar aptidão psicológica, o possível comprador de uma arma é avaliado por um psicólogo credenciado pela Polícia Federal. São feitos testes como o projetivo (quando é mostrada a uma pessoa uma imagem sem sentido e a interpretação que a pessoa faz é analisada pelo psicólogo), expressivo (lê-se uma frase e a pessoa deve reagir a ela), de memória, de atenção e uma entrevista.
A posse, se aprovada, dá direito ao requerente de manter a arma em casa, enquanto se a pessoa tiver direito ao porte, poderá andar constantemente armada.
O porte é proibido para a população em geral, mas autorizado para pessoas que trabalham na área de segurança pública e algumas outras carreiras, como auditores fiscais, membros do judiciário e do Ministério Público e moradores de áreas rurais que comprovem depender da arma para subsistência. Um cidadão que não atue nessas profissões só pode portar uma arma se provar que sua integridade física está sob risco. Essas concessões, diz a PF e o Sou da Paz, são raras.
O mercado de armas e a campanha do desarmamento
Até hoje, quem quiser se desfazer de uma arma não precisa se identificar nem explicar a origem do equipamento. A entrega é feita em órgãos da segurança pública, como Corpo de Bombeiro, guardas municipais e polícia. Por cada arma entregue, há uma indenização de R$ 150 a R$ 450, dependendo do tipo.
Paulo Guerra, de 50 anos, é dos brasileiros que se livrou de uma unidade recentemente. Ele sempre gostou de armas. Quando tinha por volta de 20 anos, comprou uma pistola para praticar tiro esportivo com amigos militares. Com o passar dos anos, a arma foi virando “um estorvo”, diz.
Paulo Guerra, de 50 anos, é dos brasileiros que se livrou de uma arma recentemente. Guerra tem uma filha de cinco anos, Giovana. “Hoje em dia não teria arma em casa de jeito nenhum, com uma criança que mexe em tudo na casa”, diz.
“Nunca pensei em usar a arma para atirar em alguém. Não é uma boa forma de defesa. Mas não sabia o que fazer com ela”, conta. Pressionado pela mulher a se desfazer da pistola, levou-a para casa dos pais, mas se arrependeu quando bandidos assaltaram a residência do casal. “Imagina se eles tivessem levado a arma. Ela estava no meu nome”, diz.
Até que descobriu por um amigo que poderia descartá-la na polícia, “e ainda ganhar uns trocados”.
Guerra tem uma filha de cinco anos, Giovana. “Hoje em dia não teria uma arma em casa de jeito nenhum, com uma criança que mexe em tudo na casa”, diz.
Diante da possibilidade de flexibilização das regras para compras de arma, ele lembra de uma briga que presenciou há alguns anos num bar. “Hoje seria pior porque estariam armados.”
Para Ivan Marques, diretor executivo do Instituto Sou da Paz, a campanha de desarmamento diminuiu sua eficácia nos últimos anos, mas “isso é natural, porque a maior parte da população já se desfez dessas armas”. “Mas é fundamental que seja um canal de descarte permanente. É como pilhas e baterias”, diz.
O número anual de armas novas registradas pela PF aumentou de 5.159 em 2004 para 42.387 em 2017. Até janeiro de 2018 havia 646.127 pessoas com registros ativos na PF, a maior parte deles de pessoas físicas (328.893), e de segurança privada (244.512).
A concessão de registros de CACs (colecionador, atirador e caçador), feita pelo Exército, também cresceu, com oscilações, de 27.549 em 2012 para 57.886 em 2017.
O Estatuto do Desarmamento reduziu a violência?
Está pronto para ir a plenário legislação que revoga o Estatuto do Desarmamento e cria o Estatuto de Controle de Armas de Fogo. A possível mudança na legislação tem gerado críticas de especialistas e pesquisadores em segurança pública.
“Apesar de todos os estudos nacionais e internacionais mostrarem que arma de fogo representa mais um risco do que uma garantia de segurança, as pessoas seguem com medo e descrentes da capacidade do Estado de prover segurança, buscam o que puder, e a arma de fogo é a primeira dessa lista”, afirma Marques.
“No entanto, o que funcionaria de verdade seria uma resposta pública: uma polícia mais eficiente, um sistema criminal que consiga combater impunidade, um sistema carcerário que consiga ressocializar, enfim um sistema de combate à criminalidade e ao medo que possa gerar segurança para que a pessoa não precise recorrer a uma arma de fogo”, acrescenta.
Segundo o Atlas da Violência 2018, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, os homicídios atingiram o recorde de 62.517 em 2016. Pela primeira vez na história, o país superou o patamar de 30 homicídios para cada 100 mil habitantes – a taxa ficou em 30,3 contra 26,6 em 2006.
Especialistas dizem que, se o Estatuto do Desarmamento não reverteu a tendência de crescimento da taxa de homicídios, ele colocou freios no ritmo de alta. Ou seja, se não fosse por ele, dizem, o Brasil seria ainda mais violento.
“Homicídios vinham se comportando numa tendência de 100% a mais a cada ano antes do Estatuto. Depois, eles continuam crescendo, mas a tendência passa a ser de 3%. Se não tivéssemos o estatuto, não teríamos 61 mil homicídios, como tivemos no ano passado, mas muito mais do que isso. Sozinho, o estatuto não resolve o problema de homicídios, que é um fenômeno multifatorial”, diz Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
Um estudo do Ipea de 2013, feito quando o estatuto completou dez anos, concluiu que a taxa de homicídio seria 12% superior às atuais caso a legislação não tivesse sido aprovada.
“Há um consenso (entre pesquisadores nacionais e internacionais) de que mais armas significa mais crimes. Uma arma dentro de casa conspira contra a segurança da família. A chance de um homicídio ou suicídio acontecer aumenta cinco vezes. Quanto mais armas as pessoas têm, mais armas são roubadas e extraviadas. Elas cairão na mão errada, no mercado ilegal”, diz Daniel Cerqueira, coautor do estudo do Ipea.
“A CPI das Armas no Rio de Janeiro mostrou que, em dez anos (2005 a 2015), 18 mil armas foram roubadas ou extraviadas de empresas de segurança privada. Arma de fogo num ambiente urbano é instrumento de ataque, e não de defesa. Outra questão é que muitas vezes quem se mata não são criminosos entre eles, mas pessoas de bem, que discutem”, completa.
Também é o que diz, por exemplo, um dos principais especialistas americanos no assunto, o economista David Hemenway, professor de saúde pública da Universidade de Harvard e diretor do Harvard Injury Control Research Center (Centro de Pesquisas em Controle de Ferimentos de Harvard, em tradução livre).
Suas conclusões são baseadas em 150 estudos sobre o efeito das armas de fogo na sociedade e na saúde pública feitos desde 1990 pelo centro que comanda.
Segundo o especialista, diversos estudos indicam que os riscos de ter uma arma em casa superam os benefícios. Entre esses riscos estão os de acidentes fatais, suicídios, intimidação e de mulheres e crianças serem mortas.
Daniel Cerqueira, do Ipea, aponta que o aumento de 1% na disponibilidade de armas de fogo eleva em até 2% a taxa de homicídio do Brasil e que, quanto mais armas existirem, mais elas serão roubadas ou extraviadas, “acabando nas mãos erradas e baixando o preço delas no mercado ilegal”, segundo Daniel Cerqueira, diretor do instituto.
Os especialistas dizem que a limitação do estatuto é a ausência de políticas públicas acessórias para a redução de homicídios.
Dizem também que há muitos aspectos da lei que nem sequer foram implementados. “O estatuto ficou conhecido como a possibilidade de as pessoas entregarem armas que não querem mais, mas deixou muito a desejar no que diz respeito a questões técnicas que ajudam a polícia a tirar a arma da mão do criminoso”, afirma Marques.
Ele cita como exemplo a implantação de bancos de dados balísticos, que permitiriam identificar a arma da qual um projétil saiu em um crime violento. Segundo Marques, essa ferramenta jamais foi implementada.
Outro exemplo é a junção de bancos de dados que registram as armas – parte é feita pelo Exército, parte pela Polícia Federal.
Quais os argumentos de quem é a favor da liberação?
Um dos principais argumentos de quem defende a flexibilização do comércio de armas é de que qualquer cidadão tem direito à legítima defesa.
Para Bene Barbosa, presidente da ONG Viva Brasil e autor do livro Mentiram para Você sobre o Desarmamento, há dois pontos principais para explicar seu ativismo pela liberação. “O primeiro é filosófico, porque o cidadão tem o direito de se defender e, para exercer esse direito com eficácia, a única ferramenta disponível é a arma de fogo”, diz em entrevista à BBC News Brasil.
“A segunda questão é a equiparação de força. A política de desarmamento passou uma mensagem muito clara aos criminosos de que a população está desarmada. Os criminosos têm mais poder, pois eles sabem que a chance de encontrar uma reação é mínima”.
Para André Luiz Nobre, que tem seis armas, a violência no Brasil ocorre porque os equipamentos estão na mão dos bandidos. “As armas não estão na mão das pessoas de bem. Conheço umas 20 pessoas com armas, a maioria nunca precisou atirar em ninguém”, diz, enquanto atira no clube de tiro 1911, na zona norte de São Paulo. “Sou a favor do porte, porque a polícia não consegue estar presente em todos os locais. Acho que as pessoas têm direito de se defender.
O deputado Rogério Peninha Mendonça (MDB), autor de um projeto de lei que revoga do Estatuto do Desarmamento, também argumenta que o problema da violência não é a arma de fogo ou sua presença maior na socidade, mas, sim, a pessoa que a empunha.
“Após o estatuto, o comércio de armas de fogo e munição caiu 90% no país. Essa drástica redução, comemorada de forma pueril por entidades desarmamentistas, não produziu qualquer redução nos índices de homicídio, pela simples e óbvia constatação de que não é a arma legalizada a que comete crimes, mas a dos bandidos, para os quais a lei de nada importa”, justificou, no projeto de lei.
Hoje, um dos pontos de maior crítica à legislação atual é o poder do delegado da Polícia Federal de decidir se uma pessoa tem ou não necessidade de andar armado. “Há delegados que negam o porte por questões ideológicas, simplesmente porque acham que a pessoa não tem necessidade. É uma decisão subjetiva. Ou seja, eles usam uma concepção deles para negar um direito”, afirma Barbosa.
O que já mudou no estatuto do desarmamento?
Desde dezembro de 2003, quando o Estatuto do Desarmamento começou a valer, foram feitas dezenas de mudanças no texto. Um decreto do presidente Michel Temer (MDB), por exemplo, aumentou de três para cinco anos o intervalo de revisão das licenças de posse e porte.
Muitas categorias profissionais vêm pleiteando – e algumas conseguindo – o direito ao porte. “Um defensor público pensa: ‘se um promotor pode ter arma, por que eu não posso?’ Com isso, a discussão sai do plano de segurança pública e passa a ser sobre privilégios de uma determinada profissão”, diz Guilherme Paiva, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim).
Originalmente, o estatuto dizia que só guardas civis de cidades com mais de 250 mil habitantes poderiam usar armas de fogo. Depois, o texto foi alterado para cidades de no mínimo 50 mil habitantes.
Nos últimos anos, outras categorias profissionais conseguiram autorização de porte, como analistas tributários da Receita, juízes, membros do Ministério Público, agentes e guardas prisionais.
Em 2008, agentes públicos como policiais passaram a poder usar, mesmo fora do serviço, armas particulares – e não só aquelas fornecidas pela corporação, como dizia o texto original.
Além das mudanças no texto da lei em si, houve outras medidas. Uma portaria do Exército de 2017 reduziu o número de documentos necessários para a renovação de CAC (caçadores, atiradores e colecionadores) e o Certificado de Registro teve sua validade estendida para cinco anos.
No ano passado, o Exército brasileiro também autorizou atiradores esportivos a transportarem armas carregadas de casa até o local de treinamento ou competição. Antes, o armamento só podia ser levado descarregado.
Em 2007, o STF declarou inconstitucionais dispositivos do estatuto. O porte de arma deixou de ser crime inafiançável, como determinava inicialmente o estatuto. Além disso, acusados de posse ou porte ilegal de arma de uso restrito, comércio ilegal de arma e tráfico internacional de arma voltaram a ter direito a liberdade provisória.
O que pode mudar em 2019?
Os muitos projetos de lei que facilitam acesso a armas foram substituídos por um só texto, que revoga o Estatuto do Desarmamento e cria o Estatuto de Controle de Armas de Fogo. A proposta foi aprovada em comissão especial em 2015 e está pronta para ir a votação no plenário da Câmara dos Deputados. Se aprovada, terá também de passar no Senado.
O novo texto retira a exigência de o comprador explicar por que a arma é necessária, reduz de 25 para 21 anos a idade mínima para a compra de armas; permite o porte pessoal para maiores de 25 anos; estende o porte para outras autoridades, como deputados, senadores e agentes de segurança socioeducativos e permite que pessoas que respondam a inquérito policial, a processo criminal ou que sejam condenadas por crime culposo (não intencional) possam comprar ou portar arma.
As mudanças contam com o apoio do presidente eleito Jair Bolsonaro, que fez da liberação de armas para a população uma de suas principais bandeiras de campanha.
“Posse seria para maior de 21 anos e com alguns pré-requisitos. Para o porte você cobra algo mais. Um caminhoneiro, por que não? Faz mais uns testes. Não pode ficar com o Estatuto do Desarmamento como está hoje que, de forma irresponsável, desarmou o cidadão de bem e deixou o bandido com fuzil”, disse ele, ainda candidato, em entrevista à Rede TV.