Luiza Franco
A densa floresta que hoje serve de moldura para as paisagens paradisíacas do Rio de Janeiro já foi quase careca em algumas partes. No século 19, suas árvores foram derrubadas para dar lugar principalmente a plantações de café, produto cada vez mais lucrativo naquela época. Até hoje quem caminha pela Floresta da Tijuca e Paineiras esbarra em ruínas de construções desse período.
Viajantes estrangeiros que estiveram no Rio naqueles anos escreveram que não raro a fuligem das queimadas na Floresta da Tijuca e matas adjacentes chegava a encobrir o sol do meio dia, dizem pesquisadores.
O desmatamento, somado ao aumento da população, ao clima seco em alguns anos e à falta de infraestrutura no Rio, acabou, por vezes, deixando a capital imperial sem abastecimento de água.
A consequência foi o surgimento de um mercado paralelo de venda de água, a disseminação de doenças e, alguns anos depois, o replantio de mais de 100 mil árvores, no que foi o maior esforço de reflorestamento em floresta tropical do mundo até então.
A iniciativa se deveu também, dizem pesquisadores, a uma cultura intelectual de valorização da preservação da natureza que ganhava força naquela época.
A BBC conversou com historiadores e geógrafos para reconstituir essa ocupação, o desmatamento, o impacto na população da época e o reflorestamento da mata que hoje faz parte do Parque Nacional da Floresta da Tijuca.
Como era o plantio de café na mata carioca
O plantio do café no Brasil começou no Pará e logo migrou para o Rio de Janeiro, no final do século 18. Mas foi no século 19 que o produto brasileiro realmente começou a decolar no mercado externo e com isso sua produção para a exportação aumentou.
Em 1808, a Família Real portuguesa desembarcou no Brasil, trazendo consigo um número de pessoas para o qual a cidade não estava preparada. Nas palavras de Pedro Menezes da Cunha, diplomata, pesquisador da história das matas cariocas e ativista em defesa delas, “a Floresta da Tijuca nunca mais foi a mesma”.
Segundo conta Menezes da Cunha, Dom João 6º permitiu que estrangeiros fixassem residência no Brasil e convidou para o país nobres e fazendeiros franceses que haviam deixado seu país durante a Revolução Francesa e o período napoleônico.
Esses estrangeiros – não só franceses, mas também holandeses e de outras nações europeias – compraram terras nas partes altas da Floresta da Tijuca, onde o clima mais ameno. A região virou o ambiente da alta sociedade do Rio de Janeiro, onde as famílias ricas se refugiavam do calor no verão.
Mas além disso, aquele ambiente era mais adequado ao plantio de café, avesso a temperaturas altas. “O padrão era comprar, desmatar, vender a madeira como carvão vegetal e plantar café no terreno ‘limpo’, descreve Menezes da Cunha em seu livro Parque Nacional Da Tijuca : 140 Anos Da Reconstrução De Uma Floresta, escrito em co-autoria com Marcos Sá Corrêa e Ricardo Azoury.
Ilustrações da época mostram bem como era a paisagem: encostas recortadas por grandes faixas de plantação de café; nas partes planas, grandes casas.
Como conta o professor Rogério Ribeiro de Oliveira, do Departamento de Geografia da PUC-Rio, também havia carvoarias na Floresta de Tijuca. Sua equipe de pesquisa já localizou cerca de 200 delas. As árvores cortadas da floresta eram usadas para a produção de carvão vegetal e depois davam lugar às plantações. Também há registros históricos que mostram que nas montanhas havia pastos e plantações de legumes e frutas.
Houve até uma tentativa de cultivo de chá, feita com trabalhadores vindos de Macau, na China, que à época era colônia portuguesa. É daí que vem o nome de um ponto turístico atual da Floresta da Tijuca, a Vista Chinesa. As plantações, no entanto, não vingaram.
Como o desmatamento afetou o abastecimento
Historiadores e geógrafos dizem que o Rio de Janeiro tem problemas de abastecimento de água desde sua fundação, em 1565, no alto de um morro, perto de onde hoje fica o bairro da Urca. Segundo informações da Companhia Estadual de Águas e Esgotos (Cedae), a principal fonte à época era uma lagoa, que era chamada de “lagoa de água ruim”. O primeiro aqueduto só foi concluído em 1723. Nireu Cavalcanti diz que já havia desde o século 17 legislação para proteger as nascentes, mostrando que o assunto já era uma preocupação antes mesmo do aumento de plantação de café.
“A cidade sempre sofreu com estiagens e tinha poucas alternativas de fontes de água”, diz o geógrafo Rogério de Oliveira. “As plantações de café do século 19 foram instaladas nas partes altas, mais frescas, onde as condições climáticas eram melhores para o seu plantio, e essas são justamente as áreas de nascente dos rios”, diz ele.
O professor explica como o desmatamento afeta o volume de águas nos rios. A floresta, diz, é um ambiente de infiltração. Com a floresta funcionando normalmente, a água da chuva vai batendo nas copas das árvores, dissipando energia, por isso, quando chega no solo, chega com menos força. Não encontra a terra, mas a serrapilheira (camada de folhas), que é uma espécie de esponja, que acumula três vezes seu peso em água. Sem a mata, a água cai com muito força e desce morro abaixo, sem infiltrar a terra, o que seca as nascentes.
“O café tinha outro problema, ligado ao fato de que ele era plantado em linhas morro abaixo. Isso fazia com que se abrissem pequenos canais, onde a água corria direto.”
Isso se somou ao aumento populacional na cidade, que fez crescer a demanda por água, e o histórico problema de falta de infraestrutura de abastecimento.
Como o desabastecimento afetava a população
Em anos de menos chuva, o problema do desabastecimento se agravava. Historiadores citam alguns anos como especialmente críticos: 1824, 1829, 1833, 1834, 1844 e 1856.
“Era o que você imagina – mau cheiro, doenças”, diz Menezes da Cunha.
Claudia Heynemann, pesquisadora do Arquivo Nacional e autora de Floresta da Tijuca: natureza e civilização, publicado em 1994, diz que “o Rio de Janeiro era uma cidade assolada – por seca, pela dificuldade de canalização da água, por doenças e epidemias, muito calor. Os relatos dos estrangeiros davam conta disso, mas havia também um tom de preconceito da parte deles”, diz ela.
O historiador Nireu Cavalcanti conta que a coroa teve que colocar policiais para proteger os chafarizes. “Foram estabelecidas cotas e quem tinha fonte de água dentro de sua propriedade foi convocado a liberar o acesso para que a população pudesse usufruir também”, diz ele.
Cavalcanti lembra que nessa época se fortaleceu a profissão de aguadeiros, vendedores de água, mas os preços cobrados eram altos.
“A solução clássica é buscar água mais longe. Quem tinha escravo, mandava buscar. Houve até casos de pessoas pegando caravelas e viajando para buscar água em outros lugares porque os mananciais secaram”, conta o geógrafo Rogério de Oliveira.
Reflorestamento e soluções para o abastecimento
Com o agravamento do problema, dizem os pesquisadores, o desmatamento começou a ser apontado como causa.
“A Tijuca, cujos mananciais vinham cada vez mais sendo aproveitados para abastecimento da cidade, fez com que em 1857 a atenção do governo se voltasse para as suas florestas”, contou o escritor Gastão Cruls no livro Aparência do Rio de Janeiro, publicado em 1949.
“As fazendas aí abertas uns trinta anos antes e queimadas subsequentes tinham-lhe quase completamente acabado com a pujante vegetação. Urgia reflorestá-la”, escreve Cruls.
Claudia Heynemann lembra que havia uma tradição intelectual na Europa e nos Estados Unidos que também ressoava aqui e que preparou o terreno para a aceitação da ideia de reflorestamento.
“José Bonifácio (naturalista e estadista brasileiro) já falava disso no século 18. E havia também uma crítica a um tipo de agricultura, que era o modelo agrário exportador, que era a cultura do próprio café, à exploração do trabalho escravo, como um tipo de agricultura atrasado. Os próprios ministros de Dom Pedro 2º diziam isso”, diz ela.
“Isso aconteceu numa época em que começava a surgir uma consciência ambiental. No mundo ocidental, estavam discutindo os efeitos negativos da Revolução Industrial, e nessa esteira foram criados diversos parques nacionais nos Estados Unidos”, diz Menezes da Cunha.
Heynemann cita como exemplos do desenvolvimento dessa ideia de preservação a criação do Imperial Instituto Fluminense de Agricultura, que administrou o Jardim Botânico, a as aulas de Engenharia Florestal que passaram a ser lecionadas na Escola Politécnica.
“Apesar de ser algo extraordinário (o reflorestamento), não era excepcional que se preocupasse com isso”, diz a pesquisadora.
O processo começou em 1861, quando o Visconde do Bom Retiro deu ao Major Manoel Gomes Archer a missão de replantar as árvores da floresta.
A coroa então desapropriou as terras e pagou indenizações aos fazendeiros. Segundo Cavalcanti, eles não tiveram muito espaço para manobra – o máximo que podiam fazer era contestar o valor que receberiam.
A Floresta da Tijuca foi então fundada, e o processo de reflorestamento durou décadas. Enquanto isso, foram sendo criadas soluções de curto prazo, por exemplo, a construção de caixas d’água na mata da Gávea Pequena.
“A essa altura”, diz o livro de Menezes da Cunha e colegas, “já se tinha como ponto pacífico, contudo, que as águas da Tijuca não seriam suficientes para o abastecimento do Rio de Janeiro. Nesse sentido, ainda no fim do século XIX e primeira metade do século XX, grandes projetos de captação na Pedra Branca e de transposição do Tinguá e do Guandu reduziram significativamente a dependência da Cidade com relação aos mananciais da Tijuca.”
“Mas não foi antes dos anos 1940 do século 20 que a cidade melhorou mesmo sua situação de abastecimento, com o início da captação do rio Guandu”, diz o geógrafo Rogério de Oliveiro.