Com os olhos cheios de lágrimas e a voz embargada, o Procurador clamou para que os Desembargadores lembrassem sobre o que os levou ao Direito, o que os levou à Justiça
Por Marcelo Feller
Hoje [25/7/19], definitivamente, foi dos dias mais emocionantes da minha carreira.
A pedido do Padre Julio Renato Lancellotti e da Ju Hashi eu advogo para o Henrique. Um morador de rua vítima da operação Cidade Linda, do Dória.
GCM’s abordaram a barraca do Henrique e de um vizinho de barraca, para que saíssem de onde estavam. “Enfeiavam” área nobre da cidade, ao lado da rua Avanhadava.
Vendo o amigo apanhar dos GCMs, Henrique resolveu dar um chute na viatura para atrair a atenção dos GCMs para si mesmo. A estratégia deu certo – ele protegeu o amigo – mas foi preso em flagrante. Ficou preso por mais de duas semanas, porque não tinha dinheiro (evidentemente) para pagar a fiança estipulada em um salário mínimo e meio.
Acabou condenado por dano qualificado, a 7 meses de prisão em regime semiaberto.
Apelei da condenação, e hoje sustentei oralmente a absolvição de Henrique. Declamei da tribuna “os ninguéns”, de Galeano, abordei a situação do povo em situação de rua, de como seu barraco é sua casa e seu domicílio, do absurdo do processo em si. E dei motivos jurídicos para sua absolvição (ausência de laudo, princípio da insignificância e legítima defesa de terceiros).
Depois sustentou oralmente o Procurador de Justiça Maurício Ribeiro Lopes. Magistral.
Se disse envergonhado, enquanto membro do Ministério Público, pela “estupidez” que fizeram com dois moradores de rua. Ficou indignado por haver processo contra os dois moradores de rua, mas nenhum processo pela omissão do município, do estado e da União pela falta de políticas mínimas que assegurem a dignidade dessas pessoas.Disse que os fundamentos jurídicos, todos, eu já tinha dado. Mas que era preciso mais. Era preciso que o Tribunal desse um voto paradigmático, dizendo inaceitável a criminalização da miséria. Segundo o Procurador, um certo capitão Jair tem dito que não há fome. Que não há desemprego. Que não há recessão. Como se as palavras pudessem apagar o que o povo vive e sofre.
Terminou citando outra passagem de Galeano, sobre os abraços, ao nascermos e morrermos, que estão nas pontas de nossas vidas. E pediu não uma absolvição qualquer. Mas uma absolvição calcada nos ideais de justiça que um dia trouxeram ele, e os desembargadores, a atuarem no direito e na justiça .
Com os olhos cheios de lágrimas e a voz embargada, o Procurador clamou para que os Desembargadores lembrassem sobre o que os levou ao Direito, o que os levou à Justiça, e que a sentença absolutória estivesse calcada ali.
Agradeceu, e terminou dizendo: “Obrigado. E não me desculpem por isso” (por ter chorado enquanto sustentava).
O Desembargador relator retirou o caso de pauta. Vai reavaliar. Suspenso o julgamento, o Procurador (que não é meu amigo, apenas o conheço dos tribunais) levantou-se e veio até mim com os braços abertos.
Abraçamo-nos fortemente, na frente de todos. Coração com coração. Os olhos dos dois marejados e muito emocionados.
Ficamos, juntos, esperançosos numa estrondosa absolvição.
Dias como hoje me devolvem um pouquinho a esperança e a fé que busco ter no sistema. Mesmo que ultimamente esteja bem difícil manter a fé nas instituições.
Um autor italiano já escreveu que “para encontrar a justiça, é necessário ser-lhe fiel. Ela, como todas as divindades, só se manifesta a quem nela crê”
Hoje, creio um pouco mais do que ontem.