PL viola CF ao proibir prisão em flagrante e colocar AGU para defender militares

O projeto de lei do presidente Jair Bolsonaro (PSL) que cria regras para agentes de segurança em operações de garantia da lei e da ordem (GLO) amplia as hipóteses de legítima defesa.

Tânia Rêgo/Agência Brasil Michel Temer autorizou operação de GLO no Rio de Janeiro em 2017

Por Sérgio Rodas

projeto de lei do presidente Jair Bolsonaro (PSL) que cria regras para agentes de segurança em operações de garantia da lei e da ordem (GLO) amplia as hipóteses de legítima defesa. Além de estimular a violência e a impunidade, a proposta viola a Constituição ao proibir a prisão em flagrante de militares e policiais e ao estabelecer que eles serão defendidos pela Advocacia-Geral da União nesses casos.

O texto, enviado ao Congresso na quinta-feira passada (21/11), cria regras para atuação em operações de GLO de integrantes das Forças Armadas, Polícia Federal, Polícia Rodoviária Federal, Polícia Ferroviária Federal, Polícia Civil, Polícia Militar e Corpos de Bombeiros Militares.

O projeto proíbe a prisão em flagrante de quem estiver agindo em legítima defesa. Para o jurista Lenio Streck, a prática é inconstitucional. “Policiais não são juízes. É um absurdo. Quem está dando essas ideias ao presidente? Parece que quem elaborou esse projeto não estudou Direito. Deve ser de outra área”.

Além de proteger militares e policiais, a proibição da prisão em flagrante em operações de GLO tem uma função adicional, ressalta o professor de Direito Penal da UFRJ Salo de Carvalho: “Comunicar aos agentes da segurança que suas condutas, mesmo abusivas, estão em sintonia com a política criminal bélica que integra o atual plano dos governos estadual e federal”.

Defesa da AGU
O projeto de Bolsonaro também prevê que os agentes de segurança que responderem a inquérito ou processo em decorrência de atos praticados em operações de GLO serão defendidos pela Advocacia-Geral da União. Porém, isso é função de advogados ou da Defensoria Pública, não da AGU, avaliam Lenio Streck e Salo de Carvalho.

O artigo 131 da Constituição estabelece que a AGU “representa a União, judicial e extrajudicialmente”, cabendo-lhe “as atividades de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo”.

A Lei Orgânica da Advocacia-Geral da União (Lei Complementar 73/1993) regulamenta as atividades do órgão. A AGU é composta por advogados da União, que atendem pela administração direta, e procuradores da Fazenda Nacional, que cuidam de assuntos tributários. Vinculam-se ainda à AGU os procuradores federais, membros da Procuradoria-Geral Federal, que atuam junto às autarquias e fundações públicas federais; e os procuradores do Banco Central.

Todos esses advogados públicos atuam em defesa do Estado, não de servidores acusados de irregularidades ou crimes.

Não é a primeira vez que Bolsonaro tenta colocar a AGU para representar servidores acusados de ilicitudes. Apresentada nos primeiros dias de seu governo, a Medida Provisória 870/2019, posteriormente convertida na Lei 13.844/2019, atribuiu ao órgão a função de defender os agentes de segurança pública que venham a responder inquérito policial ou processo judicial em razão da profissão.

A MP alterou a Lei 11.473/2007, que trata da cooperação federativa na segurança pública, e alcança todos os integrantes da Secretaria Nacional de Segurança Pública, incluídos os da Força Nacional, os da Secretaria de Operações Integradas e os do Departamento Penitenciário Nacional.

Ação no STF
A questão foi levada para discussão no Supremo Tribunal Federal em 2003. À época, o Conselho Federal da OAB ingressou com ação direta de inconstitucionalidade (ADI 2.888) contra o artigo 22 da Lei 9.028/95, que alterou as atribuições institucionais da Advocacia-Geral da União previstas no Código de Processo Civil.

A OAB apontou que a Constituição Federal prevê que a AGU defende interesses da União e não permite atuação em interesses dos servidores públicos. Inicialmente, a ação foi distribuída ao ministro Gilmar Mendes, mas desde 2011 está na mesa da ministra Rosa Weber, que substituiu a relatoria e admitiu o ingresso, como amicus curiae, do município e estado de São Paulo; da Federação Nacional dos Policiais Federais (Fenapef) e da Associação Nacional dos Procuradores de Estado (Anape).

No mesmo ano, o Rio Grande do Sul pretendia adotar a medida em âmbito estadual, que foi barrada pelos ministros na análise da ADI 3.022.

Outras inconstitucionalidades
A proposta que o presidente enviou ao Congresso ainda amplia as hipóteses de legítima defesa. Repetindo o Código Penal, o texto afirma que “considera-se em legítima defesa o militar ou o agente que repele injusta agressão, atual ou iminente, a direito seu ou de outrem”.

O projeto também diz que fica considera-se injusta agressão, hipótese em que estará presumida a legítima defesa, a prática ou a iminência da prática de ato de terrorismo ou conduta capaz de gerar morte ou lesão corporal; restringir a liberdade da vítima, mediante violência ou grave ameaça; ou portar ou utilizar ostensivamente arma de fogo. Nesses casos, o agente de segurança responderá somente pelo excesso doloso, e o juiz poderá atenuar a pena.

Como a legítima defesa já é prevista pelo Código Penal, não há necessidade de uma regulamentação específica para operações de GLO, opina Salo de Carvalho. Ele também avalia que a medida irá estimular a violência policial e garantir a impunidade dos agentes de segurança que a praticarem.

“Todavia, o que se pretende é operar uma mudança: 1) no conteúdo da excludente, aceitando casos de legítima defesa antecipada, o que é vedado pela lei; 2) na forma dos autos de resistência, reforçando a sua duvidosa legitimidade; e 3) na comunicação com as forças de segurança, garantindo simbolicamente a impunidade nos casos de atuação em GLO, situação que, na atual estrutura do sistema penal brasileiro, aumenta significativamente a letalidade policial nas áreas vulneráveis”, destaca o professor da UFRJ.

“Esse projeto é, além de tudo, irresponsável”, critica Lenio Streck. Provavelmente nenhum país do mundo teve tido coragem de fazer isso. Se for aprovado nesses moldes, o porteiro do STF declara inconstitucional. O projeto parece imaginar um estado de guerra ou estado de sítio. Lamentável”.

Para o jurista, a proposta é repleta de violações à Constituição. Segundo ele, o texto desrespeita os princípios da dignidade humana, da vida e do devido processo legal. Isso porque permite que um policial atire sem que a vítima esteja necessariamente cometendo um delito.

Nessa mesma linha, o criminalista Fernando Augusto Fernandes ressalta que legitima defesa é usar moderadamente os meios necessários na proteção de um bem jurídico. Dessa maneira, quando uma vida estiver em risco, permite-se uma reação que possa culminar na morte do agressor.

“Mas não é possível prever legítima defesa para repelir uma lesão corporal ou para tratar uma simples conduta de porte ilegal de arma sem a ação, ou simples violência ou grave ameaça. É evidente que a proposta fere a proporcionalidade e cria a possibilidade de penas de morte – algo por si só inconstitucional, mais ainda sem o devido processo legal. O texto torna o estado de guerra, que é exceção, em regra”, diz Fernandes.

O projeto de Bolsonaro não só é inconstitucional e ilegítimo do ponto de vista de um Estado Democrático de Direito, como também se trata de “um retrocesso gigante ao autoritarismo de época não tão longínqua, a ditadura civil-militar”, analisa Victória-Amalia de Barros Carvalho Gozdawa de Sulocki, professora de Direito Penal da PUC-Rio.

Ela também entende que a proposta do presidente é uma forma de driblar as dificuldades que o pacote anticrime, do ministro da Justiça, Sergio Moro, está enfrentando no Congresso. Em setembro, o grupo de trabalho da Câmara dos Deputados que analisa as medidas retirou do texto as ampliações de excludentes de ilicitude para policiais.

*Texto alterado às 13h25 do dia 27/11/2019 para correção de informações.

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