Quando a ditadura perseguiu cientistas e interrompeu pesquisas: os 50 anos do ‘Massacre de Manguinhos’

Quando soube de sua cassação, o entomologista (estudioso de insetos) carioca Sebastião de Oliveira, de 52 anos, custou a acreditar. "Você esquece que hoje é 1º de abril?", rebateu ele à técnica de laboratório do parasitologista Herman Lent que lhe dera a notícia.

ACERVO DA CASA DE OSWALDO CRUZ (COC)

Os cientistas foram perseguidos, também, por divergir sobre o papel social do IOC.

Enquanto aqueles que detinham o poder, como Rocha Lagoa, nomeado diretor em 1965, queriam que a instituição se limitasse a produzir soros e vacinas, os cientistas acreditavam que a produção científica era um importante instrumento para o desenvolvimento nacional.

Mais que isso, defendiam a criação de um Ministério da Ciência e da Tecnologia, um sonho que só se tornaria realidade em 1985, com a redemocratização do país.

“Víamos a ciência como algo fundamental para o desenvolvimento socioeconômico do país. Eu podia me aposentar. Já tinha mais de 35 anos de serviços. Mas, eu disse: ‘Eu não. Eu não me aposento. Vou cair. Mas, vou cair em pé’. E fiquei aqui até que me cassaram”, relatou Haity Moussatché ao Acervo de História Oral da Casa de Oswaldo Cruz.

Por essas e outras, os dez cientistas foram taxados de subversivos e acusados de conspirar contra a administração pública. Em uma das visitas que fez ao laboratório de Lent, logo que assumiu a direção, Rocha Lagoa chegou a comentar, ao discorrer sobre seus planos para a instituição, que se baseava na orientação do Pentágono, a sede do Departamento de Defesa dos EUA. “Não pude deixar de emitir uma sonora gargalhada”, relata Lent, no livro O Massacre de Manguinhos.

Nem o filho do fundador da instituição, Walter Oswaldo Cruz, escapou ileso. Por recomendação de Raymundo de Britto (1909-1988), ministro da Saúde do governo Castelo Branco, Rocha Lagoa ordenou que todo e qualquer recurso destinado ao IOC passasse pelo seu crivo.

Acusado de propaganda subversiva e proselitismo político, Oswaldo Cruz deixou de receber os repasses vindos de instituições americanas, como as fundações Ford e Rockefeller.

Seu laboratório chegou a ser fechado pela direção. Em 1967, teve um infarto fulminante e morreu aos 57 anos.

“Desde 1964, o filho de Oswaldo Cruz foi vítima de perseguição política. Há quem atribua seu adoecimento ao estrangulamento de suas pesquisas”, observa Hochman.

Em 1969, Rocha Lagoa foi nomeado ministro da Saúde do governo Médici e a situação no instituto se tornou insustentável. Seis meses depois de sua nomeação, os dez cientistas que ele perseguira implacavelmente durante sua gestão foram defenestrados da instituição. Em 1978, em depoimento à revista IstoÉ, Rocha Lagoa se isentou de qualquer responsabilidade.

Ao assumir o ministério, explicou ao repórter Maurício Dias, já havia duas comissões de inquérito, ambas instauradas na gestão de seu antecessor, Raymundo de Britto, investigando os pesquisadores.

Em O Massacre de Manguinhos, Lent rebate essa versão. “Como diretor do instituto, o Lagoa pleiteou nossa saída junto a dois ministros, mas não conseguiu. Quando ele se tornou ministro, fez o que quis.”

Cientistas reintegrados 16 anos depois

Em 1986, cinco anos depois da sanção da Lei de Anistia, os dez cientistas foram reintegrados à Fiocruz. Apenas Lent optou por não regressar à instituição. Preferiu continuar dando aulas na Universidade Santa Úrsula, em Botafogo, na Zona Sul do Rio, que o acolhera em 1976.

“Ao voltar para o Brasil, meu pai foi acolhido pela Santa Úrsula e convidado a montar um laboratório de pesquisa. Ele achou que não seria correto abandoná-la para voltar à Fiocruz”, relata seu filho, Roberto.

Os demais pesquisadores sugeriram nomes que consideravam importantes para o desenvolvimento de suas pesquisas. O então presidente da Fiocruz, o médico sanitarista Sérgio Arouca (1941-2003), autorizou todas as contratações.

A cerimônia de reintegração aconteceu no dia 15 de agosto e contou com a presença, entre outros, do ator Mário Lago (1911-2002), presidente da Comissão Nacional de Anistia; do deputado federal Ulysses Guimarães (1916-1992), presidente da Câmara; e do antropólogo Darcy Ribeiro (1922-1997), então vice-governador do Rio.

“A dor que me dói, a lágrima que eu choro, é pelas pesquisas que foram interrompidas e nunca mais se farão. É pelos jovens cientistas que teríamos formado e que não se formarão nunca. A Ciência é a última profissão que não se aprende nos livros. É um cientista que cria outro. E vocês, os mais preparados para frutificar novas gerações, foram proibidos de se multiplicar”, discursou Darcy Ribeiro.

Os dez cientistas concederam uma série de entrevistas às pesquisadoras da Casa de Oswaldo Cruz, Wanda Hamilton e Nara Azevedo. Por vezes, caíram na risada ao recordar o absurdo das investigações. Certa vez, foram acusados de promover “feijoadas e vatapás subversivos” nas dependências da instituição.

Emocionados, lembraram, ainda, da solidariedade prestada por seus funcionários. Um deles disse a Sebastião de Oliveira que, caso ele precisasse, poderia pegar o que quisesse em uma conta que mantinha em um armazém das redondezas.

“Homenagear a memória dos cientistas cassados e de todos aqueles que sofreram perseguições políticas é uma advertência: não haverá desenvolvimento científico e tecnológico sem memória, liberdade e justiça. Defender a Ciência é defender a democracia”, afirma Hochman.

 

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