Releitura de peça de Chico Buarque destaca condição do negro

Em cartaz em São Paulo, adaptação de “Gota d’Água” tem direção de Jé Oliveira, estudante de Ciências Sociais da USP

Peça Gota D'Água {PRETA} releitura do espetáculo de Chico Buarque e Paulo Pontes . Foto: Cecília Bastos/USP Imagem

 

 

 

Em cartaz em São Paulo, adaptação de “Gota d’Água” tem direção de Jé Oliveira, estudante de Ciências Sociais da USP.

Por Laura Alegre – Editorias: Cultura


Ouça no link acima entrevista do diretor e ator Jé Oliveira e da atriz Juçara Marçal sobre a peça Gota d’Água {PRETA}. A entrevista foi transmitida pela Rádio USP (93,7 MHz), no programa Via Sampa, no dia 6 de fevereiro de 2019.  


Nesta sexta-feira, dia 8, estreia no Itaú Cultural, em São Paulo, a peça Gota d’Água {PRETA}, uma releitura da peça Gota d’Água: Uma Tragédia Brasileira, de Chico Buarque de Holanda e Paulo Pontes, de 1975. As apresentações seguem nos dias 9 (sábado), 10 (domingo) e de 14 a 17 (de quinta-feira a domingo), sob a direção de Jé Oliveira, que é aluno do curso de Ciências Sociais da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP.

Oliveira afirma que o desejo de adaptar a peça veio da possibilidade de pensar a complexidade política do País. “Gota d’Água contém essa reflexão, o que é muito triste, porque foi escrita em 1975 e é como se falasse da gente hoje”, diz. Além disso, o diretor vê que “existe uma grande possibilidade de várias personagens serem negras, principalmente Joana, porque ela é da umbanda e é pobre. Então tudo leva a crer, social e historicamente, que essa personagem é preta”. Ele conta que a graduação na USP contribui muito para sua capacidade de análise sociopolítica, e isso o ajudou a fazer a adaptação, prezando sempre pela coerência contextual.

Gota d’Água {PRETA} – título intencionalmente escrito dessa forma, para enfatizar que se trata de uma releitura da obra de Chico Buarque – tem enfoque na ressignificação do texto original, de maneira a corrigi-lo e atualizá-lo, abordando temas que trazem a realidade negra à tona. São discutidos assuntos como a ascensão social do negro, o feminismo, o papel da mulher, a corruptibilidade humana e tantas outras questões que dizem respeito não somente a pessoas negras, mas sim a toda a sociedade.

Para Juçara Marçal, atriz que vive Joana, uma das personagens principais, o núcleo feminino dessa adaptação de Gota d’Água mostra o poder da mulher negra. “A maneira com que esse grupo foi construído, não somente com Joana, mas também com as comadres, forma uma equipe muito poderosa que revela não somente a opressão sofrida por nós, mas também o que há de potente nessa comunhão feminina”, diz a atriz.

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Peça mostra a força da união entre as mulheres negras – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

A história original é inspirada em Medeia, do poeta grego Eurípedes, e tem como uma das protagonistas Joana, moradora de um conjunto habitacional, mãe de dois filhos e ex-mulher do sambista Jasão. Juçara Marçal diz que resolveu aceitar o papel dessa mulher batalhadora e intensa por ser uma proposta irrecusável. “No momento em que vivemos, no Brasil e no mundo, achei que viver Joana era um desafio que tinha que encarar – não só para mim como atriz, mas também como cidadã. A voz de Joana tem uma importância no cenário atual, e foi isso que me fez querer interpretá-la.”

Para a atriz, Joana é representação da “pátria preta”. Oprimida e posta em situações de severas dificuldades, “ela é um claro retrato do brasileiro oprimido”, conta Juçara.

Jasão é outro personagem importante da peça. Ele é ex-marido de Joana e sambista que chega ao sucesso com a música que leva o nome da peça, Gota d’Água. O protagonista – interpretado por Jé Oliveira -, uma vez separado de Joana, se torna noivo de Alma, filha de Creonte, um homem corruptor e poderoso, dono das casas da vila onde antes Jasão morava com Joana e os filhos. Esse é o estopim para que Joana desenvolva sede de vingança e Jasão se sinta uma voz entre os poderosos.

Entretanto, o personagem não obtém sucesso em ser mediador dos ricos – em especial, Creonte. Oliveira afirma que a maior lição que o público pode aprender com seu personagem é o de não ser ingênuo. “Sozinho, como diz a banda Racionais, ninguém aguenta. Jasão acha que sua inteligência, carisma e talento o colocam no mesmo nível que os reais detentores do poder, o que não é verdade.”

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O elenco da peça dirigida por Jé Oliveira – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Nesse contexto, são exploradas as relações humanas a partir de personagens representativas de suas camadas sociais, de acordo com seus costumes e crenças. Por falar em crenças, as religiões africanas estão bem representadas na peça: não somente na fé das personagens, mas também na música, que ajuda na ambientação e composição do universo recontado por Jé Oliveira. A peça inclui cantos do candomblé e da umbanda e danças típicas com acompanhamento de tambores.

Além desses elementos, vale ressaltar que existe um “coro negro”, análogo ao das tragédias gregas, que ajuda na narrativa. Segundo Oliveira, a sonoridade é muito importante para o desenvolvimento da história, tendo várias funções em cena. Mais do que mera sonoplastia, a música propõe reflexões sobre as vivências das personagens, e a atualização da peça permite que essa área seja muito bem explorada, acrescenta o diretor. “O diálogo que estabelecemos entre Racionais e Chico Buarque, por exemplo, é um fator muito importante, que nos ajuda a ‘enegrecer’ a obra original.”

A direção musical é de William Guedes, responsável por uma instrumentação diversificada, que além da percussão tradicional também conta com DJ, saxofones, guitarras, violões e cavacos. As encenações são sincronizadas com a música: seja um som tenso proveniente de tambores, sejam acordes melancólicos de uma guitarra, cada detalhe é pensado para ambientar o público ao universo da Vila do Meio-dia.

Além de Juçara e Oliveira, atuam na montagem MC Dani Nega, Aysha Nascimento, Marina Estevez, Matheus Sousa, Rodrigo Mercadante, Ícaro Rodrigues e Salloma Salomão. A banda de apoio é composta de Fernando Alabê, Gabriel Longuitano, Suka Figueiredo e DJ Tano. Segundo Oliveira, o trabalho conjunto entre todos os participantes é o que deixa a apresentação impactante e harmônica, dando destaque às denúncias sociais que regem a proposta da peça.

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Juçara Marçal vive Joana e Jé Oliveira interpreta Jasão – Foto: Cecília Bastos / USP Imagens

Gota d’Água {PRETA} estreia nesta sexta-feira, dia 8, às 20 horas, no Itaú Cultural (Avenida Paulista, 149, próximo à Estação Brigadeiro do Metrô, em São Paulo). As apresentações seguem nos dias 9 e 10 (sábado e domingo) e de 14 a 17 de fevereiro. De quinta-feira a sábado as sessões começam às 20 horas e, no domingo, às 19 horas. A entrada é gratuita e os ingressos devem ser retirados na bilheteria uma hora antes do início do espetáculo. O espaço comporta 224 lugares e a peça contará com interpretação em libras.


Fonte:www.jornal.usp.br

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