Intensidade da reação de células do intestino pode servir de marcador para bactéria que produz toxina
O trabalho, descrito em artigo da revista científica Microorganisms no mês de julho, teve a colaboração de pesquisadores do Instituto de Física de São Carlos (IFSC) e do Instituto de Matemática e Estatística (IME) da USP. “As bactérias Escherichia coli que produzem a toxina Shiga são chamadas de STEC e em geral são associadas à diarreia, mas também podem causar Síndrome Hemolítico-Urêmica (SHU), quando a toxina atravessa a barreira intestinal, entra na corrente sanguínea e acaba por causar lesão renal e insuficiência renal”, relata o professor Carlos Alberto Moreira Filho, do Departamento de Pediatria da FMUSP, que coordena a pesquisa. “Crianças com menos de cinco anos são o grupo com maior risco de desenvolver a síndrome.”
O reservatório natural das bactérias STEC são a carne e as fezes de bovinos, o que torna sua detecção essencial para a vigilância sanitária.
“No Brasil, já foi identificado um sorotipo de STEC (O113:H21), que não foi encontrado em pacientes com SHU”, explica a pesquisadora Silvia Yumi Bando, primeira autora do artigo sobre a pesquisa. “Entretanto, na Argentina, Estados Unidos, Austrália e Japão, além de países da Europa, esse mesmo sorotipo está associado à síndrome”.
Os pesquisadores compararam os genes da O113:H21 isolada no Brasil (Ec472/01) com os da bactéria identificada em um paciente na Austrália (EH41). Eles constataram que a Ec472/01 não expressa o gene dicA, um regulador de virulência (ou seja, da capacidade do vírus se multiplicar e provocar doenças), e que promove a expressão de outros genes, associados à ocorrência da SHU, na bactéria EH41.
A diferença no repertório genético entre duas bactérias da mesma espécie levou os cientistas a pesquisarem qual a resposta das células superficiais do intestino delgado (enterócitos) à presença de cada uma delas. “Como as bactérias causam diarreia, seu ambiente é o intestino, ao qual precisam aderir para criar colônias. Assim, a toxina é transportada através da corrente sanguínea até os rins, podendo causar SHU”, relata Silvia. “Os enterócitos possuem microvilosidades, que formam uma espécie de ‘tapete’ para facilitar a absorção de nutrientes pelo intestino. Elas são o primeiro lugar onde as bactérias se fixam.”
Alterações genéticas
Os experimentos com as bactérias foram realizados em laboratório, em culturas de células derivadas do intestino humano, conhecidas como Caco-2. “Elas imitam as microvilosidades para reproduzir o microambiente intestinal”, aponta a pesquisadora. As bactérias são colocadas no meio de cultura e durante três horas é analisado se elas aderem às microvilosidades e as destroem para formar colônias. “No final do ensaio, a bactéria que causa a síndrome levou os enterócitos a alterações genéticas mais rápidas, inflamação e morte (apoptose), enquanto a que não causa a síndrome provocou menos alterações, principalmente na estrutura das células (citoesqueleto) e uma resposta imune moderada.”
Para avaliar de modo detalhado as mudanças nos enterócitos, foram usadas as técnicas de microscopia eletrônica, para verificar as características externas (fenotípicas), e a análise temporal da rede de expressão gênica global (transcriptoma), que identifica as diferenças em nível molecular. “A microscopia revelou que a bactéria EH41 causa uma destruição muito mais intensa das microvilosidades”, aponta o professor Moreira. A análise do transcriptoma mostrou que as interações entre os genes dos enterócitos, em resposta à bactéria, mudavam a cada 15 minutos. “Em apenas uma hora de exposição, já havia um padrão de resposta inflamatória e de morte celular. Em resumo, a EH41 leva a uma resposta diferente dos enterócitos, provavelmente devido à sua maior virulência e patogenicidade.”
A análise genética dos enterócitos foi feita por meio da visualização em 3D das redes de expressão gênica, realizada por um software desenvolvido no IFSC pelo professor Luciano da Fontoura Costa e o pesquisador Filipi Nascimento Silva. Também foi realizada a identificação dos genes associados aos diferentes intervalos de resposta às duas bactérias. A criação dos modelos matemáticos adotados na pesquisa teve a colaboração do professor Roberto Marcondes César Junior, do IME, por meio de um projeto temático da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), na área de ciências da computação.
“Normalmente, são usados algoritmos (fórmulas matemáticas) de aprendizado de máquinas, que são abastecidos com dados para ‘aprender’ a fazer a identificação”, aponta o professor do IME. No estudo realizado pela FMUSP, foram usados dados de expressão gênica (transcriptômica). “No entanto, os dados existentes não eram suficientes. Assim, foi preciso estudar o problema com especialistas e desenvolver um modelo matemático que compense a falta de dados e permita fazer a visualização científica, ou seja, interpretar os resultados dos experimentos.”
O professor Moreira ressalta que a pesquisa atesta a importância do estudo dos fatores ambientais que influenciam a virulência das bactérias STEC, inclusive a passagem pelo trato digestivo bovino e humano. “Os resultados abrem perspectivas para identificar novos marcadores moleculares de virulência e patogenicidade das bactérias, que serão úteis para a vigilância epidemiológica”, destaca. “Além disso, as conclusões da pesquisa ajudarão a entender os mecanismos de indução de resposta imune que podem levar a condições graves, como a SHU.”