No dia 5 de junho, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Edson Fachin aprovou uma liminar barrando operações policiais em favelas do Rio de Janeiro durante a pandemia da COVID-19. A Sputnik Brasil ouviu pesquisadores, um advogado e uma escritora da Maré que explicam por que a medida deve continuar.
A decisão é parte da discussão da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635 (ADPF 635) que discute no STF a ação policial no Rio de Janeiro. A medida, uma iniciativa do PSB ao lado de diversos movimentos sociais de favelas cariocas, deve voltar a ser discutida pelo STF em agosto deste ano.
A ação emerge em meio ao contexto do aumento de mortes em operações policiais mesmo durante a pandemia do novo coronavírus no estado Rio de Janeiro, marcado por episódios de mortes de crianças e adolescentes, além de interrupções de ações solidárias de movimentos sociais.
Em abril, a Sputnik Brasil mostrou que as mesmas organizações que levaram a medida ao STF mantêm um esforço conjunto para distribuir cestas básicas em favelas. Alguns desses grupos relataram que essa distribuição se manteve mesmo em situações hostis envolvendo operações policiais.
Na segunda-feira (13), em apoio à ADPF 635, foi publicado um manifesto assinado por 92 pesquisadores de diversas universidades e institutos de referência na área da Segurança Pública. Entre eles está Paulo Baía, professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que destaca o ineditismo da ação no Supremo, que já soma três votos favoráveis à manutenção da liminar concedida por Fachin, e avalia que ela se tornará um marco.
“O simples fato do ministro Fachin já ter dado seu voto favorável e concedido a liminar, isso traz para a polícia militar do Rio de Janeiro e para todas as polícias militares do Brasil um elemento importante, que é rever procedimentos, rever protocolos e agir dentro da lei. Eu quero enfatizar que o que se pede na ADPF é o cumprimento rigoroso da lei e que não haja tratamento diferenciado entre a população favelada e outras áreas do estado do Rio de Janeiro”, diz o pesquisador em entrevista à Sputnik Brasil.
Baía afirma também que o aumento de mortes em operações policiais na pandemia é “a consagração de um processo de segregação territorial” e espacial de uma população vítima da desigualdade social.
Letalidade policial sobe no semestre, mas mortes diminuem após liminar
Ao longo dos meses sob quarentena no Rio de Janeiro, as chamadas “mortes por intervenção de agentes do Estado” se mantiveram em patamares altos e bateram recordes mesmo com a emergência sanitária no estado. O semestre de janeiro a julho de 2020 foi o segundo mais sangrento em comparação com o mesmo período em outros anos da série histórica, como mostram os dados publicados pelo Instituto de Segurança Pública do Rio de Janeiro (ISP).
O ISP também aponta que no mês de junho, no qual passou a ter efeito a decisão do ministro Fachin, houve queda de 78% nas chamadas “mortes por intervenção de agentes do Estado”, e ao mesmo tempo, houve queda no registro de crimes violentos e roubos. A tendência de queda na letalidade policial foi percebida anteriormente por pesquisa do Grupo de Estudos dos Novos Ilegalismos, da Universidade Federal Fluminense (GENI/UFF).
“[A queda nas mortes e nas operações] mostra de forma evidente a eficácia da decisão liminar do ministro Edson Fachin. Nós não temos nenhum estudo que valide a tese de que as operações policiais são eficazes para diminuir a criminalidade comum. Então me parece que a decisão do ministro Edson Fachin é uma decisão de bom senso”, afirma Daniel Hirata, pesquisador do GENI/UFF, em entrevista à Sputnik Brasil
Hirata destaca que a população pobre, negra e moradora das periferias é vítima de um método de ação da polícia “extremamente ineficaz”. O pesquisador defende que em um momento como o da pandemia, as forças de segurança deveriam estar voltadas às ações humanitárias de combate à COVID-19.
Nesse contexto, o aumento de operações policiais estaria atrapalhando o próprio combate à pandemia, segundo o pesquisador, que vê na decisão liminar de Fachin uma possível mudança nesse cenário.
“Ainda que a polícia pareça não ter se voltado para essa ajuda humanitária, para essa ajuda na área da saúde, ao menos eles pararam de atrapalhar. Muitas operações que estavam acontecendo ocorriam em períodos de distribuição de cesta básica, em um momento em que a sociedade civil estava toda organizada para tentar minorar os efeitos da pandemia”, ressalta Hirata.
‘A gente não tem controle da nossa polícia’
Apesar do otimismo diante dos efeitos imediatos da ação do STF, existe a necessidade de garantir sua implementação. É o que aponta o advogado Joel Luiz, membro do Conselho de Direitos Humanos da OAB-RJ e também da Iniciativa Direito a Memória e Justiça Racial, um dos grupos que participou da redação da ADPF 635.
“Uma decisão favorável do Supremo […] não vai se aplicar por si. Não é uma frase ou algumas páginas de uma decisão que vai fazer com que a polícia, digamos, entre no eixo. Demanda um acompanhamento e o controle da ação policial, e é uma coisa que a gente não tem no Brasil. A gente não tem controle da nossa polícia”, aponta o advogado em entrevista à Sputnik Brasil, acrescentando que o Ministério Público abriu mão de sua função constitucional de controle das polícias.
A decisão liminar do ministro Fachin aponta que as operações policiais devem ocorrer apenas em casos excepcionais e informadas ao Ministério Público, o que para Joel Luiz é uma forma de reforçar a responsabilidade do órgão sobre o controle policial.
“Quando há movimentos sociais junto ao STF para que sejam rediscutidas as bases da política de segurança pública no Rio de Janeiro é porque a gente tem esse entendimento de que a política de segurança pública no Rio de Janeiro não visa a segurança pública de todos, não visa uma segurança pública efetiva da coletividade. Ela é um remédio que mata mais do que a doença”, avalia o advogado.
Joel destaca ainda que a ação é simbólica pois leva o debate do racismo ao STF e recompensa a atuação constante de movimentos sociais das áreas de maior vulnerabilidade do Rio de Janeiro, como a Baixada Fluminense.
“Isso materializa essa atuação de muito tempo desses grupos e dá força para que outros grupos sigam esse caminho e também entendam que esse caminho é viável, que é um caminho que dá frutos”, diz o advogado.
Ministro Edson Fachin possibilitou o ingresso do Coletivo Papo Reto, Mães de Manguinhos, Rede de Comunidades e Movimentos contra a Violência, Fala Akari
e da Iniciativa Direito à Memória e Justiça Racial @idmj_racial como amici curiae na ADPF635Vitória dos movimentos sociais! pic.twitter.com/NFP2w58PqD
— Joel Luiz (@joelluiz_adv) June 23, 2020
Movimentos percebem diminuição mas relatam que ainda há operações
Gizele Martins, membro do movimento de Favelas em Luta e moradora do complexo de favelas da Maré, relata que a liminar do STF reforça o trabalho contínuo de denúncia da violência.
“Nossa luta é para que nunca mais tenham as operações policiais. A gente se pergunta por que a favela tem que ter operação policial, por que o tratamento da polícia no asfalto é um e o tratamento na favela é outro, por que nós somos militarizados e controlados?”, indaga Martins em entrevista à Sputnik Brasil, que também é pesquisadora e autora do livro “Militarização e censura – A luta por liberdade de expressão na Favela da Maré”.
A autora, que tem participado de ações de distribuição de alimentos e de comunicação sobre a pandemia onde mora, relata que a partir da decisão do ministro Fachin foi possível sentir uma diferença no cotidiano da Maré, mas que ainda há favelas onde a decisão não é cumprida.
“Em algumas favelas e periferias a polícia continua sim desobedecendo essa ordem do fim das operações e continua agindo de alguma forma dentro dessas favelas. Mas dá para perceber que, sim, tivemos uma diminuição dessas operações policiais”, relata a moradora da Maré.
Para Martins, a letalidade policial, inclusive durante a pandemia, expõe as favelas cariocas como “laboratórios de uma política da morte”.
“É uma forma de controle. O controle vem por muros, vem pela falta de memória, pela retirada de direitos e vem também pela polícia”, diz.