Roberto Baggio, o craque que virou lenda no Brasil, ‘batizou’ bebês na década de 90 após o tetra

Convertido ao budismo, o jogador italiano marcado por perder o pênalti contra a seleção brasileira volta à memória nacional com a reprise da final diante da Itália neste domingo

Budista e militante, Baggio encerrou a carreira pelo Brescia, em 2004.

Convertido ao budismo, o jogador italiano marcado por perder o pênalti contra a seleção brasileira volta à memória nacional com a reprise da final diante da Itália neste domingo


 

BREILLER PIRES

São Paulo – 25 ABR 2020 – 20:39 EDT
 

 
 

O pênalti perdido contra o Brasil, na final da Copa de 1994, alçou Roberto Baggio à galeria dos craques injustiçados por nunca terem vencido um Mundial e, por tabela, ao raríssimo panteão dos vilões do futebol absolvidos pela história. Com as mãos na cintura, cabeça baixa e as trancinhas indefectíveis no cabelo, o camisa 10 da Itália desolava-se pelo erro de cálculo na penalidade, batida por cima do gol defendido por Taffarel no estádio Rose Bowl, em Los Angeles. Aquela falha capital serviria não apenas para alimentar sua figura mítica entre os italianos, mas para torná-lo, por ironia do destino, um personagem inesquecível também para os brasileiros.

Baggio chegou à Copa como o melhor jogador do mundo em atividade, grande artilheiro da Itália e da Europa. Porém, sua arrancada na competição foi discreta. A Azzurra classificou-se em terceiro lugar de seu grupo pelos critérios de desempate. Perseguido por várias lesões, o craque do time começaria a brilhar a partir das oitavas de final, quando anotou os dois gols da vitória de virada sobre a Nigéria, na prorrogação. Contra a Espanha, foi novamente decisivo ao garantir o triunfo a dois minutos do fim. Saiu machucado da partida, o que não o impediria, no confronto seguinte, de usar toda sua categoria para balançar as redes duas vezes diante da Bulgária e carimbar a vaga da Itália na final.

Depois de 120 minutos extenuantes, sob o calor de quase 35 graus, Baggio, atuando com uma proteção na coxa direita, foi o último cobrador italiano nos pênaltis contra o Brasil. Como Massaro e Baresi já havia desperdiçado suas chances, o camisa 10 caminhou para a marca da cal sem o direito de falhar. “Quando Baggio foi cobrar, tive a certeza da vitória. Quem confia em Deus nunca vai perder para quem acredita em Buda”, disse o goleiro Taffarel, um dos missionários da ala evangélica da seleção brasileira conhecida como Atletas de Cristo, em entrevista à Placar. O italiano respondeu com a mesma classe que lhe era peculiar nos gramados: “Ele tem sua fé. Eu tenho a minha. E cada um deve ser respeitado por suas crenças.”

A conversão ao budismo em um país de maioria católica se deu no momento mais dramático de sua carreira. Havia sofrido uma contusão no joelho, aos 18 anos, quando ainda defendia o Vicenza, clube que o revelou. A lesão se agravaria ao se transferir para a Fiorentina. Em uma das cirurgias, precisou levar mais de 200 pontos na perna. Desesperado pela possibilidade de ter de abandonar o futebol precocemente, cogitava tirar a própria vida até que um amigo lhe apresentou à Soka Gakkai, uma corrente budista que prega a meditação como forma de bloquear energias negativas. “Pela primeira vez, consegui me sentir confortado, feliz e motivado naqueles tempos difíceis”, recordou Baggio a um documentário japonês. Após quase três anos lutando contra lesões, finalmente conseguiu se firmar e, em 1990, disputaria sua primeira Copa. “Ao começar a praticar o budismo, tive a sensação de que surgiu dentro de mim uma imensa energia vital.”

Mesmo a contragosto da família, de formação católica, o jogador fundou escolas budistas na Itália. Às vésperas da Copa de 94, conheceu o filósofo Daisaku Ikeda, líder da Soka Gakkai, e desde então se tornou uma espécie de embaixador universal do budismo, que motivaria sua incursão pelo ativismo político. Além de integrar expedições humanitárias em localidades atingidas por terremotos em seu país e no Haiti, Baggio militou pela libertação da Nobel da Paz, Aung San Suu Kyi, que passou 15 anos em prisão domiciliar imposta pela ditadura militar no Myanmar. Ela foi libertada em 2010 e, cinco anos depois, se tornou líder do Governo birmanês. “Me identifico com sua batalha não violenta pela liberdade e a democracia”, declarou o italiano ao recebê-la em Roma.

Na Copa de 94, Baggio lamenta o pênalti perdido

Hoje, Suu Kyi é criticada por entidades internacionais pela repressão sangrenta promovida pelo Exército contra muçulmanos da minoria étnica rohingya, historicamente perseguida por radicais budistas no país asiático. Tal qual a amiga, Baggio também é questionado por contradizer o discurso de pacifista ao manter um antigo hobby. Desde os tempos de atleta, sempre foi um adepto da caça de animais, sobretudo na Argentina, onde tem uma fazenda. Em 2018, processou líderes de uma ONG de proteção animal, que espalharam cartazes por sua cidade natal, Caldogno, com imagens de Baggio empunhando armas e vestido de caçador. “Baggio tem a coragem de se definir budista e gostar de caçar, indo ao exterior para as infames viagens da morte”, acusaram os ativistas. Em sua defesa, o craque reconheceu que pratica a caça, “mas não tenho nada contra os animais”.

Apesar das críticas, a militância por causas humanitárias e o budismo lhe renderam distinções como o World Peace Award, entregue pela assembleia do Prêmio Nobel da Paz, em 2010, e a medalha de honra ao mérito da maior universidade de Soka Gakkai do Japão, em 1999. “É mais gratificante que receber a Bola de Ouro”, comparou Baggio em um discurso de agradecimento. “Baseio minha filosofia de vida na busca pela felicidade. É o que me motiva a ajudar outras pessoas.” O envolvimento comunitário além da bola ajuda a compreender a idolatria a um jogador que conquistou apenas quatro títulos na Itália, nenhum deles pela seleção. Jorge Valdano, ex-treinador e colunista do EL PAÍS, tem outra explicação. “Baggio era um atleta com aura melancólica, mas brilhante, de uma inteligência coletiva excepcional. A representação de quando o talento encontra a liberdade.”

Pela desenvoltura, capaz tanto de criar jogadas como marcar gols, o meia-atacante chegou a ser considerado na Europa “o mais brasileiro dos jogadores italianos”. Ele diz ter se inspirado em Zico, que, na juventude, o encantava defendendo o Flamengo e a seleção brasileira. Baggio também serviu de referência no Brasil. Após o pênalti perdido em 94, houve uma explosão de batismos inspirados em seu nome. Alguns deles, inclusive, trilharam o mesmo caminho pelos campos. É o caso de Douglas Baggio, atacante revelado pelo Flamengo, cujo pai havia prometido à esposa, grávida na época, que se o italiano desperdiçasse a cobrança, o homenagearia logo em seguida ao nascimento do filho, batizado sete meses depois do tetracampeonato.

Uma história parecida com a de Roberto Baggio Ribeiro da Costa, de 24 anos, que atua pelo CAP Uberlândia, da segunda divisão mineira, em posição semelhante à do ídolo italiano. A família tem um cartel respeitável de nomes de jogadores de futebol. O pai, Roberto Carlos, batizou o primeiro filho de Roberto Caniggia, em homenagem ao argentino carrasco do Brasil na Copa de 90. O caçula chama-se Roberto Romário. E, ao Roberto do meio, coube a distinção do herói às avessas de 94. “Meu pai colocou esse nome mais pela ironia, na zoeira mesmo”, conta o meia-atacante. O Roberto Baggio brasileiro nasceu em Laranjal do Jari, no Amapá, e tenta seguir os passos do homônimo consagrado a milhares de quilômetros de casa, ainda na esperança de um dia conhecê-lo. “Eu me inspiro muito nele, menos para bater pênalti”, brinca. “Já errei, mas nunca chutei por cima do gol daquele jeito.”

Neste domingo, o jogador amapaense tem a chance de assistir à final entre Brasil e Itália que originou seu nome. A partida será reprisada pela Globo na íntegra, às 16h. Hoje, aos 53 anos, Baggio ainda sente dores ao levantar da cama, fruto das lesões que acometeram seu joelho. Despediu-se do futebol em 2004, defendendo o Brescia, venerado e aplaudido de pé pela torcida rival do Milan. “As pessoas continuaram me adorando do mesmo jeito”, disse ao jornal Corriere dello Sport ao lembrar o fatídico pênalti daquela decisão. “Senti como se eu estivesse morrendo. Ainda não aceitei o erro. Eu chutei para fora o final feliz do meu sonho. Não só o meu, mas o sonho de todos os italianos. Por sorte, a vida vai muito além do futebol.” No ano que vem, a Netflix lançará um filme biográfico sobre sua carreira, Il Codino Divino, em alusão ao penteado de tranças com rabo de cavalo que o craque eternizou.

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