Número dois da estratégia digital, atrás de Carlos Bolsonaro, é símbolo da rede suspensa que pode virar dor de cabeça para Governo no TSE e Supremo. CPI das ‘Fake News’ solicita dados
A suspensão da miríade de perfis é mais um elemento que joga luz na controversa estratégia digital do presidente de ultradireita brasileiro, que, no poder, segue acionando o apelidado “gabinete do ódio” para promover o presidente e moer reputações. A eficiente máquina de propaganda que o levou ao poder e o intenso uso das redes sociais pela militância digital já estavam sob escrutínio. Tramita no Supremo Tribunal Federal um inquérito que apura um esquema de disseminação de fake news que já pôs outros bolsonaristas na mira. O tema também é objeto de uma investigação no Congresso. Além disso, a conduta de Jair Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018 ainda é alvo de uma lenta, mas perigosa ação no Tribunal Superior Eleitoral, que apura o uso do WhatsApp para envio ilegal de mensagens em massa. Todas as três frentes podem acabar sendo alimentadas pelas informações expostas pelo Facebook.
Bolsonaro, recolhido na residência oficial desde que informou ter contraído coronavírus na terça-feira, reagiu. Em sua transmissão ao vivo semanal pelo próprio Facebook, o presidente reclamou da ação da rede social. “Vemos que o Facebook derrubou páginas em todo o mundo. No Brasil, sobrou pra quem está do meu lado, pra quem é simpático à minha pessoa. A esquerda fica posando de moralista, mas olha aqui, blog me associando ao nazismo. Bolsonaro decapitado. Ninguém fala em derrubar essas páginas”, disse. Ao longo da semana, o aplicativo WhatsApp, que também pertence ao conglomerado de Marc Zuckerberg, derrubou contas vinculadas ao PT por disparo de mensagens em massa, o que infringe regras da companhia.
Procurado pela reportagem, o assessor presidencial não atendeu ao pedido de entrevista. Ele é apontado pela auditoria como o responsável pela página @bolsonaronewss, um canal de dispersão de conteúdos pró-Bolsonaro que atacava adversários políticos. Os alvos eram diversos. Desde seus antagonistas nas eleições de 2018 (principalmente do PT), passando por neo-opositores, como os governadores João Doria (PSDB-SP) e Wilson Witzel (PSC-RJ), e chegando em antigos ministros, como Luiz Henrique Mandetta, Sergio Moro e Carlos Alberto Santos Cruz.
Dois ex-aliados de Bolsonaro relataram à reportagem que Tércio se aproximou do hoje presidente em 2017, quando ficou famoso como administrador do perfil Bolsonaro opressor 2.0. A página, hoje extinta, tentava transformar o então deputado federal em uma pessoa humilde e ironizava os discursos contra minorias, tão frequente ao longo dos 28 anos de mandato de Bolsonaro na Câmara. Foi quando Tércio acabou contratado para trabalhar como assessor de Bolsonaro. Mudou-se de Campina Grande, na Paraíba, para o Rio de Janeiro. Além do emprego, morou de favor em um apartamento do parlamentar. O que despertou ciúmes do filho 03, o vereador Carlos, o responsável pelas redes do pai. Para evitar uma eventual disputa interna, Tércio saiu do gabinete de Jair para o de Carlos, na Câmara Municipal.
Na campanha eleitoral de 2018, quando Bolsonaro não tinha um assessor de imprensa oficial, era Tércio quem respondia às questões básicas da imprensa, como a agenda do candidato ou sobre em que momento ele daria uma entrevista coletiva. Também era ele quem enviava as fotos mais banais do presidente, como quando ele comia um pão francês e tomava um café em um copo de reaproveitado de requeijão em uma mesa sem toalhas.
O cargo no Planalto veio como uma premiação. Tornou-se um dos membros do batizado gabinete do ódio, o grupo formado por outros dois assessores – José Matheus Sales Gomes e Mateus Matos Diniz. Orientados por Carlos, são eles quem dão o norte da atuação de Bolsonaro nas redes e o que acaba mobilizando a militância digital.
De ascensão meteórica à dor de cabeça
Depois dessa ascensão meteórica, Tércio pode tornar-se de fato a cara vísivel da dor de cabeça que o presidente terá de administrar em seu Governo. Nesta quinta-feira, após a ação do Facebook, o presidente da CPI das Fake News, o senador Ângelo Coronel (PSD-BA), enviou um requerimento de informações à empresa para compartilhar os dados que havia nessas contas que foram bloqueadas. Se contatada irregularidades, Tércio deve ser denunciado criminalmente. “Não foi por crime que as páginas caíram. Foi por violar condutas internas da empresa Facebook. Agora, temos de saber se eles praticaram algum delito ou não”.
Um pedido de convocação de Tércio e dos outros dois membros do gabinete do ódio já foi aprovado. Assim que a CPI voltar, devem estar entre os primeiros a depor. “A retirada das páginas do ar mostra que a atuação do ‘gabinete do ódio’ seguia intensa. Isso reforça as denúncias que já vínhamos apurando na comissão”, disse a relatora do grupo, a deputada Lídice da Mata (PSB-BA).
Do Judiciário, também vieram reações. Em seu Twitter, o ministro Gilmar Mendes afirmou que o inquérito das fake news que tramita no Supremo e acossa a militância bolsonarista acabou sendo fortalecido. Disse ele: “A derrubada pelo Facebook de perfis envolvidos na divulgação de #fakenews demonstra a relevância do trabalho desenvolvido no chamado inquérito das fake news. Disseminar o ódio e incentivar ataques às instituições do país são atitudes que não podem ser toleradas em uma democracia”.
Enquanto assiste ao avanço das apurações contra o núcleo digital do Governo, Carlos Bolsonaro sinalizou, mais uma vez, que pode estar se afastando desse trabalho informal para seu pai. Em uma postagem em seu Twitter ele disse que aos poucos vai se “retirando do que sempre explicitamente” defendeu e que está “cagando pra esse lixo de fakenews e demais narrativas”. Também disse saber que ninguém é insubstituível, nem mesmo ele.
Entre os pesquisadores que rastreiam as redes de desinformação, há esperança de que o Facebook tenha começado a expor a ponta do iceberg que pode dar origem a outras investigações, mas também ceticismo. “Me parece que não acontecia apenas no Facebook e no Instagram. Quando alguém fala mal de Bolsonaro, a reação aparece em diferentes plataformas e em diferentes níveis”, diz ao EL PAÍS a pesquisadora Luiza Bandeira, que trabalha Digital Forensic Research Lab, da Atlantic Concil, e colaborou com o Facebook na investigação desses perfis. “Há muitas páginas e muitas contas que espalham essas coisas. Tem que usar [essa ação do Facebook] para começar a investigar outros autores que podem estar envolvidos”, completa. Já David Nemer, especialista em Antropologia da Informática que estuda o território virtual que abriga o bolsonarismo, é mais cauteloso: “A empresa tenta mostrar que está fazendo alguma coisa, tenta satisfazer várias frentes. Mas suspender 100 páginas não é nada”, argumenta o pesquisador. “É preciso ter cautela: essa ação não é nada mais nada menos que uma ação de relações públicas, sem efeito a longo prazo”.
Colaborou Felipe Betim.